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Os perigos da erotização precoce
Reportagem

Os perigos da erotização precoce

| SEXUALIDADE X SEXUALIZAÇÃO | Especialistas explicam como os pais podem reconhecer e regular comportamentos que não fazem parte do universo infantil
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Ilustração - dom (Foto: Arte: Domitila Andrade)
Foto: Arte: Domitila Andrade Ilustração - dom

Salto alto, maquiagens e conversas sobre namoro. Esses elementos, comuns ao universo adulto, também podem se manifestar em searas habitadas por meninas e meninos. Seja por meio de produtos midiáticos ou a partir de conversas com coleguinhas que já vivenciam essa realidade, crianças estão expostas a um mundo de conteúdos que podem favorecer a sexualização precoce ainda nos primeiros anos de vida.

Esse é um fenômeno que se manifesta não apenas em âmbitos privados, mas também em contextos mais amplos. Um dos casos mais emblemáticos é o da MC Melody. A cantora mirim é conhecida não só pelos vídeos em que canta composições produzidas em seu círculo doméstico, mas também pelas fotos que posta no perfil mantido no Instagram.

Maquiagem pesada, poses sensuais e roupas decotadas são alguns elementos que emolduram a postura adotada pela menina nas redes. Aos 11 anos, a garota não aparenta a idade que possui e canta músicas com mensagens sobre paixões e conquistas amorosas.

Em janeiro deste ano, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) abriu um Procedimento Administrativo Individual com o objetivo de apurar as condições do núcleo familiar da artista. Em nota, o MPSP declarou que o procedimento tramita em sigilo "por tratar de direitos de pessoa de menor idade".

De acordo com especialistas ouvidos pelo O POVO, várias podem ser as causas para a manifestação de comportamento como o de Melody. De acordo com a psicóloga infantil Felícia Santos, os estímulos externos que compõem as vivências infantis têm reflexo na erotização precoce. "Geralmente, a sexualização é uma prática reforçada na rotina da criança por adultos. Intencional ou não, pode estar presente em uma simples brincadeira, como o incentivo aos namorinhos na infância, cenas picantes de novelas e filmes ou conversas íntimas na presença das crianças. Enfim, tudo aquilo que desperta o interesse sexual precocemente", analisa.

Outro ponto que pode gerar dúvidas em pais e educadores é a confusão em torno dos termos sexualização e sexualidade. Esta última faz parte da natureza humana e se manifesta de um modo bastante individual. De acordo com a chefe da divisão médica da Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (Meac) Zenilda Bruno, ao contrário da sexualização, a sexualidade está intimamente relacionada às descobertas sobre o próprio corpo e como ele se comporta a partir de estímulos.

"Existe uma sexualidade normal da criança, um processo de se reconhecer como homem ou mulher, ter desejo ou querer sentir algum tipo de prazer, não necessariamente o de relação sexual, mas o de se sentir bem. Quando pequena, a criança já tem a sexualidade dela. Aos 5 anos, ela já começa a descobrir a genitália, descobre-se diferente das demais e percebe que se tocar (nas partes íntimas) vai sentir prazer. Isso é normal no processo de descobertas", afirma.

Ainda de acordo com a Zenilda, é também fundamental que a família entenda como cada conceito pode se manifestar no desenvolvimento infantil. "Usar o salto da mãe pode ser normal, pois a menina naturalmente deseja imitar a mãe. O que não pode haver é o estímulo para comprar maquiagem, pintar a unha, usar roupas provocantes, coladas ao corpo. Em relação aos meninos, é importante que não se estimule o pensamento de que a genitália dele é o que possui de mais importante. Também é desaconselhável exibir a genitália do garoto como se fosse um prêmio, como geralmente se vê".

Tão importante quanto entender como isso se manifesta é construir um espaço de conversa em que a criança questione essas influências e tenha abertura suficiente para dialogar sobre o que pensa com pais e responsáveis. Segundo Josi Mota, psicóloga especialista em sexualidade humana, anseios que configuram erotização precoce precisam ser encarados sem alarde, mas de modo cuidadoso.

"É fundamental que os pais questionem os filhos se esse desejo é fundamental ou não. Não é dizer que não pode, mas é deixar a criança curiosa em relação a isso, deixar que ela reflita sobre a necessidade de pintar uma unha, por exemplo. Se o diálogo for aberto e bem construído, ela (a criança) não vai precisar desse modelo externo", conclui.

CONTATO

O POVO entrou em contato com os pais de MC Melody para entender de que modo o casal gerencia a carreira e a exposição midiática da garota. Por meio de contato telefônico, o pai disse que não se pronunciaria sobre o caso. A mãe de Melody não respondeu à solicitação de entrevista.

Michelline e Rafael Gondim com os filhos Samuel e Sara: diálogo em casa
Michelline e Rafael Gondim com os filhos Samuel e Sara: diálogo em casa

Diálogo é uma construção diária

Samuel, 14, e Sara, 7, são irmãos e crescem em um ambiente de muita conversa. Filhos de Michelline e Rafael Gondim, os dois foram ensinados desde cedo sobre a importância de não pular etapas. Em relação à filha, Sara afirma não alimentar desejos de embelezamento. "É natural dela ser vaidosa, mas eu não incentivo. Como eu ando arrumada, de batom, maquiada, ela copia esse padrão, mas eu não estimulo. Ela ganhou um batom vermelho, certa vez, e meu marido disse que não era uma cor adequada para a idade dela", lembra.

Por conta da formação em psicopedagogia, Michelline tem mais facilidade para compreender a importância desses limites. No colégio onde trabalha como professora, ela tenta questionar os alunos sobre determinados desejos que não estão alinhados ao universo infantil e que surgem em momentos de conversa com o grupo.

"Muitas vezes, elas se apropriam de conteúdos sem ter maturidade física e emocional. Converso muito com minhas alunas e a minha filha, por exemplo, sobre por que o uso do salto é inadequado na idade delas. Mostro como fica o esqueleto, a coluna e os problemas que podem resultar dessa atitude impensada. A gente se depara muito com a questão do 'meu amigo tem e eu quero ter também', mas a criança tem que entender que ela é um ser individual".

A pedagoga acredita que a conversa franca ainda é o melhor caminho para conscientizar os pequenos sobre os limites da linha tênue que separa os universos adulto e infantil. "Ainda sou a favor do diálogo. Vai muito do exemplo. É uma construção diária", acredita. (Nut Pereira)

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