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Fortaleza resgata a rotina após onda de ataques
Reportagem

Fortaleza resgata a rotina após onda de ataques

Com a retração da onda de violência, Fortaleza tenta voltar ao seu cotidiano, ainda que, vez ou outra, ataques atravessem os dias. Buscar estratégias para dispersar o medo coletivo é fundamental
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A onda de ataques começou em 2 de janeiro. (Alex Gomes/Especial para O POVO) (Foto: ALEX GOMES/ESPECIAL PARA O POVO )
Foto: ALEX GOMES/ESPECIAL PARA O POVO A onda de ataques começou em 2 de janeiro. (Alex Gomes/Especial para O POVO)

A Banquinha da Irmã Maria, na Praça da Estação há quase 20 anos, foi incendiada na madrugada do último dia 7, colocando o Centro na lista dos bairros afetados pela onda de violência que vem varrendo Fortaleza e o Ceará desde o início do mês. O fogo devorou a estrutura de metal, queimou fogão e salgadeira, fez derreter dobradiças e janelas de vidro. No início da semana passada, a vendedora voltou ao trabalho, depois de uma onerosa reforma que sugou suas economias. Irmã Maria é símbolo da Fortaleza que tenta retomar a rotina.

Um mês de ataques e 466 pessoas presas por participação nos atos criminosos até a última sexta-feira. Concentrada, sobretudo, em bairros da periferia de Fortaleza, e com ações que escorrem para cidades do Interior, a onda de ataques interferiu diretamente na rotina de pessoas que dependiam do transporte público para se locomover, causou apagões de energia, prejudicou a coleta de lixo e espalhou um clima de medo coletivo reforçado pelo compartilhamento de boatos e informações exageradas.

No Centro da Cidade, comerciantes entrevistados pelo O POVO estimam que a queda do movimento nos dias mais violentos foi de 30% a 40%. Para Irmã Maria, a perda foi maior, visto que a banquinha da Praça da Estação era sua única fonte de renda. "Tá pesando no orçamento, porque estou sem trabalhar. Eu tinha só uma reservinha. Tudo o que tinha apurado, estou gastando agora. Tô pedindo fiado, pegando emprestado", conta ela, que gastou cerca de R$ 4 mil com a restauração da banca, local onde há duas décadas vende coco, café, bolos e salgados para os que esperam

pelos coletivos.

Irmã Maria, que mora próximo à Avenida Domingos Olímpio, diz que apesar da redução dos ataques o clima no Centro ainda é de desconfiança. A vendedora Vânia Zanovisck, dona de um carrinho de picolé, concorda com a colega e diz que, ela própria, deixou de trabalhar durante vários dias. "Em 15 anos vendendo aqui, é a primeira vez que vejo as pessoas com tanto medo e o movimento tão fraco", lamenta.

A falta de ônibus na primeira semana de ataques obrigou trabalhadores e frequentadores da região do Centro a buscarem formas alternativas de locomoção, implicado gastos que, muitas vezes, não eram previstos. "Nos dias em que faltou ônibus, tinha muita gente pegando táxi, porque não tinha como voltar pra casa. O Centro esvaziou, as lojas fecharam. Agora tá começando a voltar ao normal", contou o taxista José Alcides Almeida, que tem ponto fixo nas proximidades da Praça da Estação desde 2017.

Até o fechamento desta edição, 36 coletivos haviam sido incendiados em Fortaleza e Região Metropolitana desde o início de janeiro. O presidente do Sindiônibus, Dimas Barreira, disse a O POVO que, apesar da manutenção dos esquemas de segurança policial e de vigilância, e dos desvios estratégicos em áreas mais perigosas, os ônibus já circulam normalmente e em todos os horários. "Meu palpite é que a tempestade está no fim e a paz se aproxima. Fortaleza já vive um clima suportável de segurança e normalidade. Apenas é preciso, ainda, paciência e precaução, pois, com menor intensidade, esta ameaça deve perdurar algum tempo, e atos violentos espaçados ainda podem ocorrer. É sintoma de final de disputa não negociada: o perdedor não se resigna", comentou.

Em entrevista a O POVO, o presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Fortaleza, Assis Cavalcante, também confirmou que os comerciantes do Centro vêm sentindo a retração nos ataques e as consequências do retorno à normalidade das rotas de coletivos. "65% das pessoas que vão ao Centro usam ônibus, seja para trabalho, seja para fazer compras. No momento que não têm ônibus, as pessoas ficam impossibilitadas de vir. Tivemos diminuição nas vendas, mas aos poucos estamos voltando ao normal. A população já está saindo de casa. As pessoas continuam consumindo, o Estado precisa recolher os impostos, os funcionários precisam receber seus salários. A vida tem que continuar", comentou.

Para voltar à normalidade

Sobre formas de voltar à normalidade e as estratégias para desviciar a percepção, o pesquisador Luis Fernando Benicio chama atenção para o constante processo de constituição a que o homem está submetido - com mudanças que não se operam da noite para o dia. Nessa constituição, tudo influi: a dinâmica da política, a geografia, a forma como a cidade é desenhada, os referenciais do que é saudável, os direitos que são postos. Se a todo momento estamos em um momento de constituição, logo pode-se entender que tudo isso pode ser revertido, esse status quo, essa banalização da violência, esse medo exacerbado do outro".

O especialista cita como exemplo de banalização e fortalecimento de estereótipos a proposta dos programas policiais nos canais de televisão. "Às vezes é tudo tão naturalizado que a própria comunidade acaba legitimando e acreditando naquela violência. Precisamos discutir com a comunidade, de forma participativa, não só a desconstrução desse estigma, mas também o enfrentamento à violência", explica.

Também cabe à parcela da população que vive deslocada da periferia, conforme avalia Luis Fernando, a tarefa de desconstruir arquétipos. "Um primeiro deslocamento pra quem não está nesses lugares é dialogar. Temos a referência da violência, mas não dialogamos com a vida que pulsa ali. Não prestamos atenção na juventude que se organiza por meio da arte, da poesia, dos esportes. E isso tem tudo a ver. A forma como organizamos a cidade é baseada no desencontro com essas pessoas. São os condomínios ao invés dos espaços de convivência. O que sobra é uma segregação espacial que não nos deixa ver aquelas pessoas com outros olhos".

Em relação à segurança pública, Luis Fernando busca, na psicologia social, critérios que podem guiar a transformação no modo de lidar com a violência: "Se entendemos que é uma questão de enfrentamento a partir de armas, viaturas, mais presídios, mais encarcerados, temos uma resposta mínima". Também critica o discurso "tradicional e neoliberal" de que o indivíduo, quando quer, consegue mudar de vida: "É uma falácia. Você não consegue caminhar quando precisa dar conta de questões elementares
de sobrevivência".

Uma melhor saída, segundo ele, seria construir uma aproximação mais interessada. "A política pública não aprende que é preciso, primeiro, escutar os moradores, saber como eles têm lidado com tudo isso. É ver o diálogo enquanto investimento político. A gente tem percebido, nos últimos anos, redução de investimento em várias áreas e a não continuidade de projetos importantes. As facções garantem ao jovem determinado lugar social que o mercado de trabalho não garante. A prevenção vem antes, com direitos. Esse conjunto de pistas pode nos ajudar a pensar novos caminho", conclui.

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