Logo O POVO+
Corpo em estado de arte
Reportagem

Corpo em estado de arte

reportagem
Edição Impressa
Tipo Notícia
O corpo rijo e esguio de Andréia Pires oscila, sinuoso, entre as linhas tortas da Cidade. Dos seus anos passados e presentes, a cearense não sabe bem precisar quando entrou em estado de arte: parece mesmo coisa do destino, nasceu afeita ao movimento e começou a dançar ainda menina. Bailarina e graduada em Artes Cênicas, Andréia flana entre as linguagens - dirige espetáculos, atua em tantos outros, coreografa obras e aventura-se também pelo audiovisual. Atenta ao tempo, a artista entrevê no campo cultural um baile dançado a dois, uma harmonia entre o ontem e o amanhã pautada na imensa possibilidade do agora.

 

"Sou muito interessada no hoje, nas urgências. O futuro é muito emaranhado no presente. Quando penso no futuro, pergunto-me como quero viver este dia de hoje no amanhã. É substituir o 'vai dar certo' por 'o que eu posso fazer?'", reflete Andréia. Em 2019, primeiro dos dez vindouros anos para o centenário do O POVO e início de uma nova era política com a ascensão da direita ao poder, a artista inquieta-se com o desafio de estabelecer diálogo entre a classe e o governo - já nas primeiras horas de sua gestão, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) publicou a Medida Provisória 870, responsável pela extinção do Ministério da Cultura e incorporação da pasta ao Ministério da Cidadania. 

 

"O Brasil é um país muito desigual e nossa construção cultural se dá nisso: não só na parte ruim, no aspecto financeiro, mas também nessa mistura boa. 

 

O governo fascista que assumiu o poder provavelmente não está interessado na construção de poética, nas misturas que existem no País. Vem aí uma arte cada vez mais comercial, ligada ao marketing, ao merchandising. Isso tudo vai construir uma cultura mais alienada, mais elitizada e mais problemática", teoriza.

 

Andréia não acredita em uma arte asséptica, esterilizada. Para ela, o fazer artístico é como o lado avesso de um bordado à mão livre: imperfeito, repleto de rupturas, cartografia de narrativas em devir. Em tempos de Queermuseu e patrulhas policiais em exposições em Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro, escândalo é esconder o corpo. "A palavra é censura, sem medo", sentencia. "É diferença demais para o controle. A arte está no lugar da experiência e a experiência não é permitida no fascismo - ela só é permitida quando se tem democracia, quando se tem escuta e relação", complementa.

Saídas não interessam aos artistas. Entradas, sim. "O que nos reserva o futuro que bate à porta, o nosso agora, é trabalho - e não é um trabalho que mata, é um trabalho que produz vida", defende Andréia. "Quem faz política pública, na minha opinião, não é o governo ou autoridade: é a gente, somo todos nós. No Ceará, temos muitas formações gratuitas e o mérito é de quem escreveu projetos, levou lá, lutou, ficou dormindo, ocupou. Quando a gente tem força para se juntar e questionar, consegue compreender a política de uma forma horizontal". No meio do redemoinho, Andréia toma fôlego: é na arte que encontra um respiro mais fundo, com o pulmão mais aberto.

 

Bruna Forte

bruna.forte@opovo.com.br

O que você achou desse conteúdo?