Demandas, inovação, valor agregado, comodidade, sobrevivência. Palavras-chaves em tempos de internet, cartão de crédito e grandes redes. Pode até parecer passado, mas o comércio de Fortaleza abriga bodegas com caderninho de "fiados", lan house que investe e conquista pela confiança e videolocadora que não somente aluga DVDs, mas acredita na teimosia, no trato com as pessoas, na cobrança do cliente pelo filme recém-lançado.
Apesar da persistência, alguns comércios e serviços que foram destaque décadas atrás já vislumbram o novo. Devagar, analisando o que pode derivar do alicerce já construído e incorporar ao invés de apenas extinguir.
Noutros casos, perseverar pode ser ocupação de tempo e complementação de renda, sem muitas expectativas de mudança. A competitividade com o maior e mais moderno é dura, embora o bairrismo e o boca a boca também contem. Há teorias, mas na prática, não há regra.
"O comércio ou o serviço em si precisam se preocupar em atender uma necessidade do usuário ou do cliente. É uma premissa básica para o ciclo de existência", avalia o diretor do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Ceará (Ibef-CE), Rodolpho Pires. Mas é exatamente esse conceito de necessidade que hoje muda mais rápido do que se pode dar conta e que ainda se apresenta também subjetivo a partir de realidades e locais diferentes.
Agregar valor, por exemplo, nem sempre está atrelado à mais tecnologia.
Satisfazer a comodidade de quem não tem crédito institucionalizado e dinheiro disponível pode ser uma forma de capitalizar. A venda por conta, tão rara e perigosa, tem o seu diferencial. "O comércio de bairro está presente na economia na questão de comodidade e confiança, que se tornam um diferencial. Essa proximidade ajuda, mas precisa vir acompanhada de qualidade", avalia Rodolpho.
Haver cuidado, entretanto, em apostar no apelo local e até personalizado para sustentar um serviço já não muito usual. Grandes cadeias comerciais possuem áreas de inteligência de mercado também capazes de reconhecer demandas regionalizadas e investir nelas. Portanto, driblar os maiores e continuar no mercado exigirá também diversificação. Para a analista do escritório regional Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) do Ceará, Mônica Tomé, agregar novos serviços é um caminho sem volta.
"Lan houses hoje são balcões de multiserviços. O acesso às redes sociais de maneira geral as pessoas têm. A impressão, no entanto, ainda não se conseguiu pelo telefone. O local pode ser também uma estação de trabalho. Mas ela não vai estar mais presente como há 10 anos", descreve Mônica.
Conforme a especialista, ainda há a resistência de muitos comerciantes em revestir seus negócios com outros serviços, acreditando que a maré econômica ainda vai mudar.
A sobrevivência com atividades "do passado" continuará existindo, pelo menos por alguns anos. Se forem consideradas décadas e as novas gerações, o processo de compra e venda mudará, não tem jeito. "É diferente de se trabalhar com algo que inspire nostalgia. Uma coisa é uma bicicleta retrô, que tem um apelo afetivo pela imagem, pelo design. Outra coisa é uma loja ser do mesmo jeito de 50 anos atrás", complementa a analista do Sebrae-CE.
HISTÓRIAS DE QUEM ACREDITA
O botequim e a caderneta
[FOTO3]Francisco Alves Nunes, 67, hesita mostrar o caderninho com as contas feitas pelos clientes. Sim, no botequim localizado no bairro Pio XII, tem conta que chega a R$ 1 mil por mês. A maioria com bebida. Negociação rara hoje em dia, o "fiado" é a forma que o comerciante encontrou de manter a clientela, mesmo que isso também signifique problema. "Eu sei que não dá certo, porque o 'amanhã te pago' até paga, mas sempre fica um 'rabo' da conta", destaca.
Depois da bebida, o ovo é o produto mais vendido no botequim, porque é o que o "povo pode pagar para comer, a R$ 0,50". Francisco disse que, há 10 anos, quando começou o comércio, vendia peixe cozido e panelada. O supermercado aberto nas proximidades também passou a oferecer as refeições. "Eu sobrevivo com meus filhos e netos porque o dinheiro não vem só daqui mais", conta.
NO PASSADO
Vendia pratos de refeição.
Era uma das principais rendas da família.
NO PRESENTE
Principal venda é de bebida alcoólica.
É a menor parte da renda familiar.
Bodega é herança do pai
[FOTO1]Já se vão 30 anos da bodega "O Gildo", no São João do Tauape. Ovo, bombom, sabão em pó, refrigerante e picolé. A vontade de abrir o comércio foi herança do pai, que na cidade de Nova Olinda, no Cariri, sobrevivia da venda de cereais, bebidas e artigos de armazém. "Eu cresci lá no meio da bodega, ajudava ele", lembra Gildo Pereira de Sousa, 74. Para ele, bodega é um comércio que tem de tudo um pouco. Conceito que acabou sendo engolido pelos grandes supermercados.
"Eu comecei a fracassar quando lançaram o cartão de crédito, há uns 15 anos. Quando não tinha supermercado eu vendia feijão e arroz no peso, conservantes. Insisti porque a boa vontade flui muito na vida do ser humano", confessa o comerciante, que já até pensou em colocar uma máquina de cartão, mas esbarrou nas limitações econômicas. Em 15 anos o lucro diminuiu cerca de 80%.
NO PASSADO
Venda de cereais a granel.
Mais produtos.
Venda "fiado".
NO PRESENTE
A persistência em fazer o que gosta.
Apenas produtos de saída mais fácil.
Lan house que sobrevive e investe
[FOTO2]"A lan house faz toda a diferença. Aqui é praticamente a única que tem, que resistiu", destaca o analista técnico Danilo Barbosa, 36. Ele é cliente da Fast Lan House, no bairro Ellery. Para Danilo, a tradição, o respeito com a clientela e a confiança fazem o local prosseguir. "Não pode entrar sem camisa, nem acessar qualquer site. As mães confiam deixar seus filhos", acrescenta.
O comércio não somente prossegue como investe. A proprietária, Solange de Mendonça, 53, está reformando o local, que existe desde 2007. Está colocando cerâmica nas paredes e otimizando o espaço. Mas a obra só acontece aos domingos, para não atrapalhar a freguesia.
NO PASSADO
Computadores com tela de tubo, sem placa de vídeo.
Construiu uma pasta com 1.522 currículos.
Era apenas ela e a sócia.
Maioria de clientes era para jogos.
NO PRESENTE
Disponibiliza plastificação, encadernação e impressão.
Vende também acessórios.
Possui dois funcionários.
Tem três câmeras de vigilância.
Videolocadora resistente e multifuncional
[FOTO4]"O primeiro filme em VHS que eu me lembro de alugar era O Máscara e os Cds que faziam mais sucesso eram os do Pink Floyd, de música baiana e do Legião Urbana", conta Luiz Sérgio Feijó Parente, 47. Ele é proprietário da videolocadora Mega Filmes, na Parquelândia. Até três meses atrás ele conseguia manter o aluguel da loja onde disponibilizava os filmes e já dava os primeiros passos nos novos negócios: impressão, encadernação, plastificação, venda de patê.
Hoje, o cadastro de clientes assíduos passou de 3.460 para 40, mas as cobranças pelos lançamentos ainda movimentam as mensagens no celular de Sérgio. Ele ressalta que a Netflix não possui muitos dos filmes que ele aluga.
NO PASSADO
Imóvel alugado.
Mais de 3 mil clientes assíduos.
Mais de 5 mil filmes disponíveis para aluguel.
100% da receita do comércio.
NO PRESENTE
Comércio funciona em casa.
Cerca de 40 clientes assíduos.
Mil filmes, a grande maioria lançamentos, disponíveis para aluguel.
40% da receita do comércio.