Logo O POVO+
Sempre restará tudo a dizer
Reportagem

Sempre restará tudo a dizer

Edição Impressa
Tipo Notícia Por
NULL (Foto: )
Foto: NULL

Há alguma semelhança entre amar e escrever. Pela própria natureza, ambos exigem certo cuidado e delicadeza no trato. No caso dos textos, as palavras devem ser observadas com bastante atenção, respeitando seu volume, forma e densidade diferentes, para que nada seja acessório ou desconexo. Juntas e lidas, elas precisam alcançar um curioso objetivo: o de dizer. Escrever é criar sentidos. Amar é parecido.


É como se fosse uma mistura de tudo que a gente já sentiu em parte de um desafio para enfrentar a vida e o que ela pede de nós. A ansiedade e empatia, o medo e o desejo, a paciência, o cuidado, a coragem... Tudo parece ter de estar bem perto para fazer rodar o amor e, por consequência, um sentido. Até lá a gente se surpreende com o suor de volta às mãos, o jeito besta de encarar o banal, os beijos, os toques e todas as outras formas de dizer. Amar, assim como escrever, é um exercício discursivo e, por isso mesmo, tudo que for amor precisa ser dito.


As cartas são uma das pistas mais antigas dessa inusitada semelhança. São também um dos poucos suportes que guardam essas duas diferentes ações em si. Mas quem nesta pressa de hoje em dia, na era do WhatsApp, ainda encontra tempo para escrever sobre o que se ama? Me arrisquei na dúvida e saí por aí com uma placa escrita “Escrevo cartas de amor”. Fui a três pontos de Fortaleza: Praça do Ferreira, Praça dos Leões e Rodoviária Engenheiro João Thomé. Entre olhares curiosos, gracejos e indiferença, fui atalhado por algumas pessoas que se dispuseram a dizer sobre os caminhos do coração. Outras, nem tanto.


Uma das surpresas veio de uma senhora que esqueceu o aperreio em busca do bilhete de viagem e disse: “E agora você deu uma chance para a poesia?”. Fiz que sim com a cabeça e perguntei se ela toparia escrever comigo uma carta. Rapidamente, desconversou e arrumou um jeito de desviar o assunto. O amor nem sempre está perto ou ao alcance dos olhos.


Outras vezes, ele é tímido e precisa de forjar coragem no inesperado. Como a moça que se acompanhou de uma desconhecida para chegar até mim. Por vergonha, não quis ousar a aproximação por conta própria e precisou de auxílio. “Ela quer escrever uma carta, moço. É pro marido dela”. Há também um tipo de amor que não se elabora tão facilmente, que se demora até conseguir ser traduzido nas palavras. É como se o sentimento fosse algo tão transparente e corriqueiro que é difícil encontrar um nome que o signifique. Não tem forma nem jeito. Simplesmente é. “Não sei nem o que dizer, cara”, escutei de um rapaz.


Todas as histórias que ouvi, no fundo, guardam uma vontade muito premente de serem traduzidas. Ainda que seja difícil encontrar a palavra exata, ainda que falar de amor não seja tão imediato, ainda que dizer signifique perceber sentimentos em revolução… Algo precisa ser dito. É que o amor se faz também nas palavras. E para isso é preciso superar os medos, os não-ditos, a timidez. Por vezes, faz-se necessário superar os nãos. Amar é se desprender também de si para se encontrar no outro e, no caminho, perceber o que há na gente. É investigar as mudanças internas, colecionar ousadias, enfrentar o novo e o revivido. E, quando tudo for dito, nada será suficiente. Tudo ficará por dizer.

 

 

De: Kesia Costa

Para: Alex Victor Alexandre

 

RETRIBUIÇÃO

[FOTO1]

Volta e meia, Kesia diz que é surpreendida pelo namorado com poesia. Escrita por ele como um exercício de bem-querência e amor dito e redito. Todas, mesmo que muitas, parecem ser as primeiras. Estava na Praça dos Leões, no Centro, quando a encontrei com um grupo de amigos do trabalho que havia saído das orações no Igreja do Rosário. “Você escreve cartas, mas sua letra é bonita?”.


Sem boa caligrafia, mas com muita boa vontade, sentamos em um dos bancos da praça para colher palavras — as ditas em beijos e sorrisos com os olhos, mas nunca escritas em papel em branco. Perguntou para si se haveria de escrever, como forma de retribuição, uma poesia também. A conclusão foi que todo texto pode ser poesia, inclusive as cartas. E os textos podem ser também divertidos, com signos apenas decifráveis pelo cotidiano compartilhado e com marcas de uma felicidade que sempre esteve muito perto.


Praça dos Leões

4 de junho de 2018

 

Amor,


Você sempre demonstra seu sentimento por mim em forma de poesia. Dessa vez, eu resolvi também usar as palavras para dizer que te amo. Você sabe que é o meu melhor companheiro para tudo e isso me traz uma alegria sem fim. Eu fico anestesiada com o seu amor. Nosso companheirismo, o respeito e o amor que vem de nós é o que faz ser o que somos. Quero que a gente continue sempre assim. Juntos, com a nossa energia positiva fluindo e influenciando outras pessoas. Não é incomum a gente ouvir que nossa amor inspira. Isso é muito bom.


Você sabe que nesse tempo eu me vi em momentos muito difíceis, e perceber que você nunca esteve longe me deu — e ainda me dá — muita força. Neste junho, fazemos dois anos e oito meses juntos, mas sei que isso é só o começo.


Amor, você também sabe que não adianta tentar, eu sempre vou ser a campeã no jogo de golfe, mas se não fosse a tua companhia eu nunca jogaria. Por isso, deixo você ganhar às vezes.


Quero que neste Dia dos Namorados a gente seja muito feliz e que tenha muito chocolate para eu comer só depois de novembro. Você sabe por quê.

 

Com amor,

Sua Keka

 

De: Heiko

Para: Cristina dos Anjos

 

A TRADUÇÃO INÉDITA DO AMOR

[FOTO2]

Com pressa, Heiko e suas muletas passaram pelo cartaz que falava sobre cartas de amor e reagiram com alguma brincadeira antes de saírem pela Rodoviária Engenheiro João Thomé. Ele voltou minutos depois para uma conversa, acompanhado da esposa. Perguntou se a carta poderia ser escrita em alemão, inglês ou em russo. Na verdade, queria contar sobre a vida, mas resistia escrever qualquer linha.


Heiko nasceu em Frankfurt, na Alemanha, e foi diagnosticado com paralisia cerebral aos dois anos de idade. Veio parar no Brasil há cerca de 20 anos, depois de pesquisar sobre formas de tratar a deficiência e descobrir no País hospitais de referência. Decidiu morar por aqui. Depois de uma ligeira passagem, veio de vez para cá como voluntário da Associação dos Parentes e Amigos dos Excepcionais (Apae), uma das entidades com maior capilaridade no País para o tratamento e estimulação de pessoas com paralisia cerebral.


O trabalho o levou para muitos estados brasileiros, até que chegou à pequena cidade de Ariquemes, em Rondônia. Foi lá que Heiko conheceu Cristina, até então mãe de uma menina de 7 anos que se tratava na Apae. “Quando vi a Thainná e a Cristina juntas, disse que não sairia mais de lá”, conta. A visita se tornou casamento que já dura 16 anos. Hoje, moram na cidade de Jijoca.


Enquanto Heiko falava sobre a vida, Cristina o ouvia ao lado como que o apressando para embarque. Ele foi ficando, mas não escreveu nem disse do amor, propriamente. Para estimulá-lo a escrever, me arrisquei em uma brincadeira: “Quer dizer que o senhor me contou essa história toda, mas não vai escrever nenhuma linha para sua esposa?”. Cristina reagiu. “Acho difícil ele escrever. Alemães não são dessas coisas. Eu nunca ouvi um ‘eu te amo’ em todos esses anos”.


Sem constrangimento, Heiko continuou a conversa. Não demonstrou nenhuma vontade de escrever palavra, permaneceu a falar por alguns instantes e se despediu. Minutos depois, ele retornou pela segunda vez, agora sozinho. Pediu papel e caneta para escrever de próprio punho o bilhete a seguir, redigido em duas versões: uma em português, outra em alemão.


Cristina, meu bem,

 

Só para você não poder falar que eu nunca te disse:


Eu te amo.

Heiko

 

De: Mário Henrique Serafim

Para: Helena V. Rodrigues


O QUE O AMOR TRANSFORMA


Mais desconfiado que qualquer uma das pessoas que se aproximaram, Mário Henrique chegou movido pela curiosidade. Naquele momento, não queria falar de si. Esperou uma amiga escrever a carta, fez uma brincadeira aqui e outra acolá para só então tomar coragem para contar do amor que guarda. Em pouco minutos passeou por uma história que fala sobre transformação motivada pelo amor e pela fé. Na fala, a pausa era recorrente para tentar buscar as palavras exatas que fizessem sentido para a esposa Helena. Quando quis traduzir o sentimento pela filha, Lívia, a pausa foi mais longa. Mário Henrique tentou dizer mas foi interrompido. “Vixe, cara, agora eu me emocionei”. Foi assim que disse tudo.


Praça dos Leões

4 de junho de 2018

 

Minha pedrinha,


Nos oito anos que estamos juntos, nós mudamos muito. Somos outros e isso aconteceu porque absorvemos o que de melhor um oferecia ao outro. Nessa caminhada, eu nunca imaginei que fosse fácil, mas você deixou tudo menos complicado. Aprendemos que quando os dois lados cedem a vida pode, sim, ser diferente e melhor. Você sabe que nesse tempo todo eu me transformei. Fiquei mais responsável e pontual e isso é mérito seu.


Não consigo agora traduzir a alegria que me deu ver nossa filha, Lívia, nascer e estar ao nosso lado. Ela veio para banhar de ouro nosso elo. Lembro com muito carinho das vezes que conversei com ela ainda na sua barriga. Eu me tornei mais próximo dela nesses momentos e de você também. A Lívia nos fortalece e nos blinda de amor, para sempre.


É bom saber que desde a primeira vez que te vi, no ponto de ônibus, quando você voltava para a escola, eu já sabia que nós íamos ficar juntos. Você, com o seu jeito, me aquietou e me transformou. Sou grato por isso. É um sinal de Deus para minha vida.


Neste dia, o que te desejo é que nós possamos ser eternos namorados. Você sabe que não sou de declarações nas redes sociais, não gosto de compartilhar fotos, mas eu precisava te dizer isso. Quero que você seja abençoada por Deus e que saiba que sempre você poderá contar comigo. Na alegria e na tristeza. Na saúde e na doença. É para sempre.

 

Com amor e cheirim,


Mário Henrique.

De: Danusia Góis, 30 anos, caixa

Para: Valber Charles da Silva, 31, autônomo

Confirmar o amanhã

No intervalo do trabalho, a pausa para tomar um sorvete no meio da Praça do Ferreira seguido de uma surpresa. “Você escreve cartas? Queria participar”. Aos poucos, Danúsia perde a timidez e começa a falar do amor. Antes dizer o que sente, ela prefere contar como conheceu Valber e porque não se arrepende.

Ela não sabe até hoje, oito anos depois, como o recém-chegado vizinho conseguiu o seu número de celular. Mas lembra da surpresa que foi ouvir a voz dela e o convite para uma saída. Valber queria conhecer Danusia, que resistia às investidas por estar apaixonada por outra pessoa. Ela, acumulando algumas tentativas frustradas no amor, não foi muito receptiva, mas acabou cedendo aos pedidos. Hoje, sabe que fez certo.

Como dizer o que sente é também lembrar do que viveu, Danusia se anima ao contar da surpresa que foi o pedido de casamento logo meses depois do primeiro encontro. Já grávida, ela pensou que tudo deveria continuar como sempre foi até ali. Ela continuaria na mesma casa. Se tivesse sorte, talvez, o namorado se mudaria para lá, mas isso era plano pro futuro. Nada é tão urgente.

Valber pensou diferente. Em silêncio, alugou uma casa, preparou os móveis, o quarto da criança e só quando tudo estava no lugar fez o convite: “Quer ver nossa casa?”, disse. “Quando eu cheguei lá e vi tudo organizado, tudo no lugar, eu vi que ele era um homem especial e que a gente ia ficar junto mesmo”. Isso já faz oito anos. Agora, os dois se preparam para o casamento civil marcado para o dia 5 de julho. Juntos, dividem o teto, o cuidado com o filho e também os sonhos para o amanhã. É como se começassem de novo. (Rômulo Costa)

Charles,

Tenho estado muito ansiosa nos últimos dias pensando no nosso casamento. No calendário, esse dia chega no próximo dia 5, mas na vida já é uma realidade de muito tempo. Lembra daquele dia em que você chegou para ser meu vizinho? A gente não se conhecia e você quis fazer diferente. Ainda bem que você conseguiu meu telefone, me ligou e insistiu para que a gente ficasse apesar dos meus medos. Aos poucos, você se tornou uma pessoa fundamental.

Devagar, você se abrigou na minha vida e espero que isso seja eterno. Com você, eu aprendi que a vida pode ser compartilhada. Não tinha sentido isso por ninguém em todos os relacionamentos que vivi. Você me mostrou o futuro e a gente foi junto.

Quando o nosso filho Luiz nasceu, há oito anos, isso ficou ainda mais claro. Não esqueço da surpresa que você me fez quando eu ainda estava grávida. Você montou nossa casa com todo carinho, sem que eu nem desconfiasse, preparou tudo e deixou que a vida organizar o resto. Continuamos nessa caminhada. Nosso casamento é a confirmação dessa felicidade. Espero encontrar muitas outras alegrias ao seu lado.

Eu te amo e quero que a gente continue a vida juntos. Com respeito, como sempre foi.

Com amor,

Danúsia

De: Ana Gláucia Bento, 34, serviços gerais

Para: Gilvanir da Silva, 33, auxiliar de pintor

Ainda dá tempo

Gláucia observava o movimento do alto da Rodoviário Engenheiro João Thomé. Estava ali em uma entrevista de emprego e chegou até a mim com uma colega que fizera no tempo em que aguardava. Aos poucos, tomou coragem para falar do amor e de recomeços. “Acho que dá tempo”, conversava tentando investigar a fila acima. Na carta, pretendia traduzir o que sente pelo marido Gilvanir mas a rotina fez calar. Quando acertava as palavras, sorria. (Rômulo Costa)

Amor, sou muito feliz por ter você do meu lado. Saber que estamos construindo nossa família há nove anos me deixa muito realizada, porque você me surpreende e encanta. Foi uma coincidência. Você pegou meu telefone por engano. Na verdade, eu pedi para uma amiga entregar o meu número para outra pessoa. Por um erro dela caiu nas suas mãos. Foi o melhor erro que poderia acontecer. De lá para cá, nossa vida mudou, porque descobri a pessoa maravilhosa que você é. O seu olhar me encanta e me faz ser melhor do que eu sou.

Nos últimos tempos, alguns desentendimentos tentam esconder os momentos bons que temos, mas sempre é tempo de relembrar. Você é meu companheiro, homem fundamental na criação dos nossos filhos. Eles, aliás, são a marca da nossa união.

Gilvanir, eu luto pelo nosso amor porque acredito nele e em nós. Quando oficializamos isso no papel, há cinco anos, foi como se eu confirmasse tudo o que vivi contigo. A decisão de se casar só é tomada quando se quer construir um futuro. É o que temos feito até hoje.

Gosto do seu cheiro quando chega do trabalho ou quando volta do futebol de sempre. Ele me faz relembrar nosso começo. Acho que essa data pode ser também uma forma de lembrar que a gente precisa começar de novo, ter momentos só nossos, como era antigamente.

Estou disposta a diminuir meus ciúmes e fazer crescer ainda mais o nosso amor. Saiba que eu te amo. E é demais.

Com todo amor,

Gláucia 

O que você achou desse conteúdo?