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Como multar quando a lei não é clara?
Reportagem

Como multar quando a lei não é clara?

| TRÂNSITO | Alguns textos do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) dão margem para a subjetividade. O POVO procurou entender como a Autarquia Municipal de Trânsito (AMC) interpreta a lei e como esse trabalho pode ser melhorado
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Um motociclista foi multado em Fortaleza, há duas semanas, por “dirigir sem atenção ou sem os cuidados indispensáveis à segurança”. Nas observações da penalidade, a descrição “olhando para os lados” revoltou o condutor, que recorreu às redes sociais para, com apoio popular, questionar o impreciso parecer da Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC). Afinal, o que o agente do órgão fiscalizador entende por “dirigir sem atenção”? Seria conduzir distraído, pensando na quantidade de boletos a pagar no fim do mês, ou assistindo ao último capítulo da novela das seis?

[SAIBAMAIS]

A subjetividade de alguns textos do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) dá margem para interpretações — o que, constantemente, gera pedidos de revisão de multa e questionamentos como o do motociclista.


Na compreensão do advogado Rodrigo Nóbrega, especialista em direito de trânsito, leis genéricas existem porque, há 20 anos, quando o CTB entrou em vigência, os legisladores não conseguiram prever tudo o que poderia acontecer na condução de um veículo. Ainda hoje, segundo o advogado, “os órgãos de trânsito podem aplicar esse tipo de infração (subjetiva), desde que a conduta do motorista não seja específica (e já prevista em lei)”. No entanto, pondera: “Isso não desobriga o órgão de esclarecer o auto da infração”.


No ranking das dez transgressões mais cometidas no trânsito da Capital em 2017, “dirigir sem atenção ou sem os cuidados indispensáveis à segurança” foi a 5ª maior causa de multa. A resolução do artigo 169 do CTB, que detalha esse enquadramento, recomenda que as autuações sejam feitas, principalmente, nos casos em que o condutor ou o passageiro de uma motocicleta estiver usando capacete mal afivelado, sem óculos de proteção ou com o equipamento danificado. O texto também permite multar o ônibus que trafegar de portas abertas e quem estiver dirigindo “lendo, olhando para os lados, conversando distraidamente com passageiros ou procurando objetos no interior do veículo”.


Sobretudo nos últimos detalhamentos desta lei, há, ainda, muita subjetividade. Por isso, de acordo com o superintendente da AMC, Arcelino Lima, observações como “olhar para os lados” não são frequentes. Segundo o gestor, a autarquia tem autonomia para “ser muito rigorosa em relação a algumas condutas no intuito de salvar vidas”. Por isso, quando se trata especificamente desse enquadramento, a maioria das autuações teria sido por uso inadequado do capacete por motociclistas — grupo que é foco de campanhas educativas municipais desde o ano passado. Contudo, o gestor não soube informar com precisão estatísticas que comprovem o argumento.


Para o advogado Rodrigo Nóbrega, o ideal seria que os órgãos municipais de trânsito preenchessem as autuações com a maior quantidade possível de detalhes. “A lei não fala disso. Considero um erro. Porque, pelo princípio da legalidade, eles (os agentes de trânsito) só podem fazer o que a lei diz. Se o condutor quiser recorrer, como vai se defender? Há casos em que há um claro abuso do agente”, critica o especialista. “Uma coisa é olhar pro lado pra atravessar (um cruzamento), outra coisa é dirigir olhando pra trás”, complementa.


O Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) orienta que “agentes de trânsito devem atuar com bom senso, observando o princípio da razoabilidade, buscando contribuir para um trânsito seguro”.


É justamente amparado no argumento da melhoria da segurança viária que o superintendente da AMC defende o rigor da fiscalização para motociclistas. Outra infração do ranking das mais cometidas na Capital diz respeito ao uso de calçado que não se firme nos pés. Também nesse caso, o foco dos agentes de trânsito recai sobre os que se locomovem sobre duas rodas. “Saúde pública. Não é permitido andar de chinelo, o agente pode multar, mas não tem dizendo (na lei) que ele (o motociclista) tem que andar calçado. A maior parte dos atendimentos (a acidentados) de moto precisa amputar pé”, argumenta Arcelino.


DADOS DA AMC

Entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018, em operação no Centro, a AMC fez 337 apreensões de veículos por estacionamento irregular e pendências de licenciamento

COMO É MONITORADO O TRÂNSITO EM FORTALEZA

 

 

EQUIPAMENTOS ELETRÔNICOS

Monitoram semáforos (foco em avanço de sinal vermelho, conversão proibida, parada sobre faixa de pedestre, retorno proibido, velocidade).

 

Monitoram velocidade.

Monitoram faixa exclusiva para transporte público coletivo.

Monitoram restrição de caminhões.

AGENTES DE TRÂNSITO

Monitoram praticamente todas as infrações de trânsito previstas na lei, exceto excesso de velocidade. Restrição de caminhões (por comprimento e peso), só se o agente abordar o veículo e solicitar documentação. Alcoolemia, só se o condutor for abordado e se submeter ao teste do etilômetro (caso ele se recuse a fazer, nesse caso será, da mesma forma, autuado). Transparência de película fumê, só se utilizar um medidor específico ou se averiguar selo de autenticidade.

VIDEOMONITORAMENTO

Com o suporte de câmeras de vigilância, agentes de trânsito são orientados a monitorar, principalmente, estacionamento proibido, em fila dupla, sobre calçada, sobre faixa de pedestre e tráfego em faixa exclusiva de ônibus.

FONTE: AUTARQUIA MUNICIPAL DE TRÂNSITO E CIDADANIA (AMC).

AS DEZ INFRAÇÕES MAIS REGISTRADAS PELA AMC EM 2017

1 Transitar em velocidade superior à máxima permitida em até 20% - 256.564

2 Estacionar em local/horário proibido especificamente pela sinalização - 154.380

3 Avançar sinal vermelho do semáforo - 107.112

4 Transitar na faixa ou via exclusiva para transporte público coletivo - 104.675
 

 

5 Dirigir sem atenção ou sem os cuidados indispensáveis à segurança - 66.577

6 Parar sobre faixa de pedestre na mudança de sinal luminoso - 56.281

7 Dirigir o veículo usando calçado que não se firme nos pés ou comprometa a utilização dos pedais - 50.702

8 Deixar o condutor de usar cinto de segurança - 37.637

9 Estacionar no passeio - 30.250

10 Parar em local/horário proibidos especificamente pela sinalização - 28.756

FONTE: AUTARQUIA MUNICIPAL DE TRÂNSITO E CIDADANIA DE FORTALEZA (AMC).


PARA RECORRER DA MULTA APLICADA INDEVIDAMENTE

Podem recorrer o proprietário ou o condutor do veículo. No primeiro caso, o proprietário tem a oportunidade de fazer uma defesa prévia, no momento em que tomar conhecimento da multa. Já o condutor tem de estar devidamente identificado pelo agente de trânsito no auto de infração ou pelo proprietário na defesa prévia.

Se o condutor ou proprietário do veículo autuado considerar que recebeu uma multa indevida ou injusta, tem o mesmo prazo do vencimento da notificação de penalidade para entrar com recurso junto ao órgão fiscalizador que enviou a notificação.

Os recursos (com dados pessoais, do veículo e provas que contestem a autuação) podem ser julgados em até 30 dias pela Junta Administrativa de Recursos de Infrações (Jari). Mas, se isso não ocorrer no prazo, o órgão de trânsito pode conceder a suspensão da cobrança da multa e dos pontos na CNH até que o julgamento seja realizado pela Jari.

A partir da decisão da Jari, o recurso pode ainda ser encaminhado ao Conselho Estadual de Trânsito (Cetran).

FONTE: Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE) / Rodrigo Nóbrega, advogado especialista em direito de trânsito.
 

47,7%

DAS PESSOAS QUE MORRERAM no trânsito da Capital em 2016 eram motociclistas. Em 2º lugar, pedestres (30,2%) e, em 3º lugar, ciclistas (7,8%)
 

“ELES TUDO PEDEM E A GENTE NADA TEM DIREITO”

Adson de Souza Oliveira, 34, agente de segurança privada, questiona a forma arbitrária como, segundo ele, são autuadas algumas infrações de trânsito em Fortaleza. Isso porque ele conta que sua motociclista já foi “flagrada” por um agente de trânsito na contramão da direção de uma via da Capital quando, na verdade, estava no estacionamento do seu trabalho. Ele cobra que órgãos de fiscalização apliquem o arrecadado das multas em melhorias de pavimentação e que sejam mais específicos no detalhamento das autuações, para que não haja erro e para que, havendo, o condutor possa se defender. “Eles tudo pedem e a gente nada tem direito”.
 

 

“ESSA FÉ PÚBLICA É MUITO COMPLICADA”

Francisca Elizângela de Assis Rodrigues, 42, conseguiu anular uma multa de trânsito que recebeu indevidamente. A autuação mostrava a foto do carro dela trafegando com os faróis apagados num horário em que a professora estava trabalhando. Elizângela conseguiu recorrer e cancelar a infração. Por outro lado, meses antes, o marido de Elizângela foi multado por dirigir falando ao telefone. “Coisa que ele não faz”, afirma. No entanto, detalha, a multa foi aquela “em que o guarda municipal tem fé pública e diz que ele estava ao celular. Ele até pensou em recorrer, mas viu que não adiantava. Se tivesse uma fotografia, aí, sim. Mas essa fé pública é muito complicada”, diz.

 

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