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Uma trajetória de combate às injustiças

2017-07-29 01:30:00
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Às 6 horas da manhã, começa a rotina de leitura da matriarca Lourdes Albuquerque. Primeiro o jornal, da primeira à última página. Depois, com seus 95 anos recém-completos, acompanha o debate político nas redes sociais, por meio do tablet. Pelo que vê no noticiário todos os dias, ela conclui: falta ideal na política de hoje. Mãe de quatro ex-presos políticos torturados, a nonagenária se diz desgostosa com o atual cenário.


Se os anos reduziram a capacidade de locomoção e parte da saúde, presentearam-na com lembranças e lições. Cada memória de tempos sombrios está preservada, e é isso que faz com que dona Lourdes se sinta desesperançosa sobre o Brasil, que, nem de longe, era o que ela sonhava para os netos e bisnetos.


“Está uma política horrível. Quando penso que meus filhos sofreram tanto para ter um País melhor e quando vejo desse jeito... Ninguém tem mais ideal. Deputado, quando se elege, já bota um filho pra ser deputado.

[O político] não quer um Brasil para o povo, quer para si”, afirma.


Quando seus filhos foram presos, ela se segurou. Escondeu o choro. Não quis negociar com os captores, deixou que eles cumprissem a função que tinham na história. “Eles tiveram o ideal deles na maneira que quiseram. Eu aceitei porque acho que era verdadeiro”, lembra.


A mulher, que participou de sindicatos, passeatas e manifestações pela anistia de perseguidos pelo regime, hoje encontra outros meios de continuar um ser político, ativo e combatente.


O inimigo agora é o passado, que pode voltar em forma de futuro. Lourdes sabe que a memória é uma arma. O aliado que evita a repetição de erros. Ela quer compartilhar o que viveu. A angústia de mãe que não sabia se a prole voltaria viva. A trabalhadora de três empregos que acordava na madrugada com invasões de militares -levavam os livros para ser “investigados”.


Pediu ao filho, Mário Albuquerque, que fizesse algo para os jovens, pensasse nas gerações para frente. Ele criou a Associação 64-68. “Para mim, foi uma alegria. Quero que conheçam o passado para confrontar com o de hoje.”


Depois de viver golpes, mudanças de governo, regime, perdas, Lourdes se mantém atuante. Nunca entrou para a política porque não queria ser mandada por ninguém, justifica. “Não tenho um filho que trabalhe no Estado ou federal por pedido político. Todos são concursados. Nunca pedi um emprego para político”, afirma.


No aniversário de 95 anos, na última quinta-feira, 27, um dos filhos lhe deu dinheiro de presente. Ela distribuiu em seguida. Filha, esposa e mãe de comunistas, ela vive a doutrina à própria maneira, num apartamento ventilado. “Comunismo, para mim, é ajudar as pessoas. Lutar contra a pobreza”, simplifica.

 

Saiba mais


Arte

A audição pode não estar mais em perfeito estado, mas a habilidade com as mãos e a visão continuam afiadas. Lourdes Albuquerque, que foi professora de arte, borda e costura com destreza. Usa o tempo livre para criar e busca cursos online para aprender novidades. As bonecas, os guardanapos - não vende. Só para presentear.

“Não vou enricar.”


Casa cheia

A vista do corredor do prédio dá para o Mercado dos Pinhões. O apartamento onde vive Lourdes está sempre cheio de gente: netos, filhos, amigos. Sempre foi assim, até quando os convidados da casa eram procurados e as visitas

tinham de ser escondidas.


Família

Dos filhos de Lourdes, três chegaram a ficar presos ao mesmo tempo. Mário esteve nove anos na prisão. Pedro foi levado mais de três vezes, Célio outras duas. Até Nádia, que só buscava informações sobre os irmãos, acabou encarcerada, confundida com a mulher de um militante.

 

Isabel Filgueiras

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