Presidente reencontra fantasma de Eduardo Cunha
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Quantos significados e sentidos têm as palavras e os gestos que enchem ou são silenciados nas narrativas (palavra que virou modinha) produzidas pelos atos e capítulos da Lava Jato? Já há um banco de dados simbólico que preencheria um glossário cênico. Porque são muitos os personagens em conflitos com a verdade, a pergunta, a pós-verdade (outro verbete xodó), com a possibilidade da mentira, a delação, a resposta, a esquiva, o subtexto...
“NÃO renunciarei. REPITO: Não renunciarei”, enfatizou o presidente Michel Temer (PMDB), num tom ascendente da voz. Um aviso em timbre de alerta, gritado ou em reprimenda aos que o gravaram e o “enrredaram” de ontem para hoje. Numa trama meio que brechtiana e o épico de um personagem tentando convencer pelo corpo cênico rígido, rosto sem riso, mãos viciadas em apontar certezas e morais supostamente republicanas. E em meio a ausência de uma claque que o pajeou na encenação (sem o sentido pejorativo) de posse, quando assumiu com o impeachment da petista Dilma Rousseff, em agosto do ano passado.
A voz entonada do homem da República - de paletó escuro, gravata cinza, blusa branca, cabelo grisalho e lambido para trás – casa com o gesto. Mas não há leveza para a plateia que escuta um monólogo de cinco minutos e pouco. Mesmo para o espectador solitário (talvez um assessor) que tenta puxar palmas na hora da negativa da renúncia e não é seguido por ninguém do próprio presidente e sua aparente solidão de aliados - principalmente do coro ausente, antes entoado pelo PSDB.
[QUOTE1]No principal trecho do discurso à Nação, o “NÃO” acompanha a impaciência do dedo indicador incisivo da mão direita. Uma tentativa do personagem em fazer desacreditar uma suposta mentira gravada, “CLANDESTINAMENTE”, por um empresário que “auxiliava a família de um ex-parlamentar” e ex-aliado político: Eduardo Cunha.
Traição, silêncio, vingança, moralidade, corrupção... E o “fantasma” shakespeariano dado como morto, trazido de volta para a descomposição de Temer naquela hora em que a luz, segundo interpretação do presidente, marcava o melhor movimento no palco da política brasileira.
“Os indicadores de queda da inflação, os números de retorno ao crescimento econômico e os dados de geração de emprego criaram esperanças de dias melhores”, pontua o texto de início para justificar o ápice e, depois, a tragédia de ser exposto como foi.
Em cena real e transmitida via web e TV, Michel Temer tenta se desfazer de seu duplo. Um morto que, em hora alguma do texto escrito ou improvisado, mereceu ser chamado pelo nome. “REPITO E RESSALTO, em nenhum momento autorizei que pagassem, a quem quer que seja, para ficar calado (...) Não comprei o silêncio de ninguém. Por uma razão SINGELÍSSIMA, EXATA E PRECISAMENTE: Porque não temo nenhuma delação”.
Cegueira deliberada
Procurei alguns diretores de teatro para analisar a significância cênica da atuação factual do presidente. Alguns não viram, outros não quiseram falar ou se assumiram parciais. Procurei, então, alguém do Direito que trabalha com percepções. Recebi o seguinte texto e o pedido de anonimato: Há em algumas atuações os requisitos exigidos pela doutrina da “ignorância deliberada”. A prova de que o personagem “tinha conhecimento da elevada probabilidade da natureza e origem criminosas dos bens, direitos e valores envolvidos e, quiçá, de que ele escolheu permanecer alheio ao conhecimento pleno dos fatos”, na encenação.
Demitri Túlio
É REPÓRTER ESPECIAL E CRONISTA DO O POVOdemitri@opovo.com.br
Adriano Nogueira