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A psicanálise é para todos
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A psicanálise é para todos

| COLETIVIDADE | Miriam defende que a psicanálise, em sua origem, é um lugar de escuta. Que deve chegar a todos, não na individualidade, mas no contexto coletivo
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“Eu queria uma profissão que atuasse no mundo”. Assim, Miriam Debieux Rosa, 63, se tornou psicanalista e professora. Motivada pelo incômodo em ver empregados serem destratados, pelo impacto cotidiano que viveu ao sair do interior de São Paulo para a Capital, pelas pessoas que tratou e as descobertas que elas trouxeram. Se dedicou a falar e escrever sobre sofrimento, desigualdade e pobreza na perspectiva do inconsciente, dos sonhos, do coletivo. A doutora em Psicologia Clínica, professora titular da Faculdade de Psicologia da PUC-SP, acredita que a investigação da psique humana precisa sair dos consultórios, ir às ruas, pensar o eu em seu meio. E não apenas enquanto um indivíduo. Miriam considera na vida, no discurso e no trabalho, a segregação social que repercute na sociedade que temos, desigual, onde ricos e pobres não têm os mesmos direitos. E tenta desvendar um pouco da escuridão ensolarada da mente humana, com a certeza de que a escuta é uma forma de mudar o presente e o futuro.


O POVO – Qual foi um dos primeiros trabalhos da senhora enquanto psicanalista?


Miriam Debieux - No doutorado fui trabalhar com crianças e os segredos das famílias em relação a elas. Um dos primeiros atendimentos que fiz, e foi bem marcante, era uma mãe que trazia o filho com o sintoma de distração, que não conseguia aprender. Com o menino na sala ela me contou que ele era adotivo, mas que ele não sabia. Eu perguntei como assim, se ele estava ouvindo? Ela disse que o menino era distraído. Depois, sozinha, vi que ele parecia realmente não ter escutado. No entanto, quando pedia para ele desenhar, ele fez exatamente o relato que a mãe descreveu sobre a sua família de origem. Que a mãe dele era louca, que morreu em um hospício… A questão do inconsciente se punha ali para mim como algo que é visto, escutado, mas que não poderia ser aceito pelo próprio eu. Porque isso iria desorganizar a relação dele com a mãe adotiva. Ela fazia questão que ele não soubesse. Era uma mensagem pra ele: você não pode saber disso. E onde ficam essas informações que a criança sabe, mas não pode incluir no seu campo de conhecimento? Uma coisa é saber e a outra é conhecer. Tem saberes que você se dá conta que tem e com os quais você pode operar. Essa criança sabia, mas não podia operar. E isso acaba vindo como um sintoma.


OP – Como essa impossibilidade de operar o conhecimento durante a infância reverbera na vida adulta?


Miriam Debieux – Trabalhei dois tipos de relação: a criança que não pode saber e como isso reflete no campo da aquisição dos saberes, na escola; e a criança que repete isso em ato. Ou seja, ela é incitada a fazer aquilo que os pais não fizeram. Só que fora do contexto. E essas ações se tornam, às vezes, e principalmente na adolescência, atos transgressivos e que a família mesmo não reconhece fazendo parte da sua moral. Já comecei a ver que, numa transgressão, tem muito mais do que só, como a gente costuma pensar, uma noção de indivíduo que é uma pessoa de um caráter ruim, uma pessoa má.

Tem algumas relações bastante intrigadas em relação à transmissão na família e depois no social. Que constrói uma situação em que o ato que se produz, o ato transgressivo, pode se transformar não só em transgressão, mas também em crime. Então comecei a trabalhar a partir daí com muitas questões de adolescentes envolvidos em conflito com a lei. Era uma população que ficava muito fora do contexto daquelas que a psicanálise se ocupava.


OP – A concepção sobre esses adolescentes conseguiu evoluir ao longo dos anos e incorporar mais dessas questões ?


Miriam Debieux – O que sempre foi marcado, e ainda é, é a diferença de quando o ato de transgressão vem de uma classe social média ou alta e quando não. Um uso de drogas, por exemplo, quando é por um menino dos Jardins, dos bairros de elite de São Paulo, ele vai ao psicólogo e faz parte da educação contornar aquelas atos transgressivos. Mesmo quando é roubo, não se chama a Polícia. Se é num bairro pobre, um garoto negro, ele vai ter outro tratamento.


OP – E quando se fala que essa forma de punir é diferenciada, envolve -se a sociedade, a Polícia, o Judiciário... Porque, mesmo essas instituições, não se livram da parcialidade ?


Miriam Debieux - O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente ) foi um esforço enorme de diversas parcelas da sociedade, de pessoas do Direito, de todos os campos da Psicologia e da Assistência Social, que percebiam essa divisão radical que se estabelecia no Brasil entre as classes sociais. Há um desamparo, no sentido social. Essas pessoas estão desamparadas pela falta de moradia, de escola, de assistência médica. E ao mesmo tempo pelo desamparo discursivo, que é quando se entende que essa falta de amparo não conta na vida daquele sujeito. Dizem que nós vivemos em um país democrático, mas nós sabemos que não é assim.


OP – Quando a senhora fala “nós”, a quem se refere, especificamente?


Miriam Debieux – Estou falando das classes dominantes. E mesmo dos juristas, dos psicólogos, dos médicos...


OP – E porque essas classes, tão conhecedoras de que as ações individuais refletem também uma condição social, não reconhecem essa realidade?


Miriam Debieux – Isso se torna um discurso homogêneo que é muito mais um discurso de classe, que faz um certo pacto social de não levar em conta as diferenças que se mantém no Brasil. Porque é interessante economicamente, porque nós temos uma história de escravidão que não foi bem estabelecida. E eu discuto mesmo.

Digamos que há uma resistência do próprio psicanalista em escutar as classes populares. Se ele está amarrado em um pacto social de classe, ele não consegue escutar um sujeito que tem ali, um sujeito de desejos, que tem sonhos, que erra, que tem projetos de vida, que sofre e que as decepções e as violências que ele vive têm repercussão em sua constituição.


OP – A psicanálise não consegue enxergar esse sujeito num contexto coletivo?


Miriam Debieux – Eu acho que, primeiro, não tem ‘a psicanálise’.

Tem as psicanálises. Depois, se você pensar em Freud, em como ele começou a psicanálise, ele começou escutando justamente mulheres que eram consideradas loucas. O fato de ele escutá-las, não como doentes, mas portando um certo saber do funcionamento social, das relações do lugar da mulher dentro do campo social, onde a mulher como tal praticamente não contava. O fato dessa pessoa ser escutada mudava seu destino. O que estou querendo dizer, dando uma volta pra responder, é que a psicanálise subverte no seu início os padrões que estão estabelecidos. Essa é a ideia da psicanálise. É não tomar o sujeito pela sua aparência. A partir dessa escuta da mulher, Freud sugere começar a pensar num outro modo de funcionamento, que é o funcionamento inconsciente. E que organiza o sujeito e seus atos. Se até então se pensava que era a razão a principal característica do ser humano, que o diferenciava dos outros.

Freud contesta isso com a questão do inconsciente.


OP – Como funcionarão razão e inconsciente na execução dos atos?


Miriam Debieux – A razão vai dar um contorno explicativo aos atos do sujeito. “Eu fiz tal coisa pelo seu bem”, essa é razão que explica alguns atos nem sempre louváveis. Ou então “eu fiz porque o outro mereceu”. São formas de explicar esse fazer que está impulsionado por dimensões que o próprio sujeito não sabe bem quais são. Freud passou de pensar a psicanálise pela via do sintoma, ou seja, da patologia, para pensar pela via dos sonhos. Para mostrar que isso era uma questão que habitava todas as pessoas. O inconsciente não era algo patológico, mas sim que estava presente nos mecanismos de funcionamento de todas as pessoas porque todas as pessoas sonham. O sonho é a produção do inconsciente, é aquilo que revela para gente algo do seu desejo. Se revela em forma desses enigmas que os sonhos nos traz, que podemos escutar ou esquecer. São escolhas.


OP – Então a origem da psicanálise era escutar quem não conseguia falar?


Miriam Debieux – A psicanálise aparece para dar lugar de escuta para quem não a tinha, e para quem não tinha lugar no laço social, como foi com a mulher ouvida no hospício. Se depois, por conta de alguns processos da sua história, (a psicanálise) se torna elitista, passa a pensar o inconsciente como um sujeito só, como único responsável pelo que acontece com ele, é porque foi perdendo essa subversão que a originou. Que é subverter o senso comum do que acontece com o outro. Deixa ver elementos que não estavam postos.


OP – A senhora falou em sonhos e na importância deles. Quando falamos em transgressões sociais, principalmente envolvendo jovens, a impossibilidade de realizar sonhos simples, como ter uma família ou um tênis, são muitas vezes o estopim de ações violentas...


Miriam Debieux – Tem uma autora em psicanálise que afirma que, na adolescência, você precisa ter o mesmos investimentos que se tem para receber uma criança. Quando há um nascimento há também uma modificação do campo social, para a criança existir precisa ter um investimento afetivo e um lugar social para ela. Quando há essa passagem da infância para a adolescência é necessário ter o mesmo investimento. É uma série de mudanças, tem a inexperiência com o novo corpo, com as repercussões que os atos dele tem nos outros. E até há esse acolhimento em algumas classes sociais. Mas se alguns adolescentes têm esse tempo de espera, outros não têm. Pelo contrário, a adolescência acaba sendo uma precipitação da infância.

A adolescência só é glamourizada como um lugar por excelência nas classes média e alta. Nas classes populares é vista como perigosa. O adolescente tem pressa e precisa ter o mínimo de perspectiva. Não é o tênis pelo tênis, o objeto é um sinal de pertencimento.


OP – Como esses adolescentes são vistos?


Miriam Debieux – A mensagem que é passada para eles é uma certa repetição daquilo que a sua família já viveu. Então embora a gente tenha, com raras exceções, pessoas que consigam romper esse ciclo, para maioria das pessoas esse ciclo vai se tornar muito agudo na adolescência. Não é um tênis que ele está perdendo, mas um sonho.

Um sonho de ter uma existência onde ele é considerado, onde a sua vida tem valor, onde ele não fica nesse quase limbo onde se ele viver ou se morrer tanto faz, porque ele não tem nenhuma importância.

Tem um outro autor que vai falar dessa figura no campo social, cuja a vida não tem a mesma importância que o outro e cuja a morte também não tem. É evidente que quando morre um menino da periferia não é a mesma coisa de quando morre um menino de outra classe social. Não tem o mesmo luto social, não tem o mesmo empenho em entender o que produziu aquela morte.


OP – A senhora trabalha com muitos grupos vulneráveis. Como a psicanálise consegue chegar a eles e o que pode fazer de diferente?


Miriam Debieux – Primeiro ela tem que dar conta de que as mesmas formas de atender no consultório muitas vezes não são efetivas para as pessoas que estão em situações diferentes no laço social. Como por exemplo o imigrante forçado ou o refugiado, que são condições emblemáticas nesse sentido. O refugiado é aquele que, em geral, teve uma situação de perseguição política no seu país. Ou seja, lá ele era um combatente. Ele era uma pessoa ativa, integrada no seu meio e combativa. E por isso ele passa a ser perseguido. Nesse processo de ser perseguido, de ser exilado e de ser desconsiderado, ele vai se transformar muitas vezes, quando chega no país de acolhida, numa pessoa que só pede coisas. Um ser só de necessidade, que precisa de assistência jurídica e social. Ele esquece um pouco da sua dimensão desejante. Justamente nesse momento é que uma escuta é importante. Para ele poder se apropriar desse novo modo de vida e do que é oferecido, ele precisa retomar um lugar num discurso em que ele fale como sujeito e não como um ser de necessidade. Quando a gente fala do pobre às vezes não fica tão claro porque é muito naturalizado. Mas quando a gente vê acontecendo de um mês pro outro- como na imigração, como vamos analisar isso na psicanálise? É uma realidade que desorganiza, a pessoa está sob uma função traumática, desorganizado em suas funções egóicas. O que a impede de pedir uma ajuda ou mesmo de confiar que o outro vai ajudar. Ele quebrou tantos vínculos, que achar que alguém está disponível para ajudá-lo, e não para dominá-lo, é fundamental para um atendimento clínico. Essas populações as vezes não buscam esse atendimento porque há uma experiência de dominação e não de escuta.


OP – O Ceará passa por um momento delicado em relação à violência. Tivemos pelo menos quatro chacinas só este ano. Uma delas em uma praça. Do ponto de vista psicológico, o que essa realidade representa?


Miriam Debieux – Uma situação de violência dramática como essa só ocorre se muitas outras violências foram invisibilizadas. Ela não ocorre à toa e de repente, mas porque muitos outros fatores estavam presentes. O fato violento é muito usado porque ele dá uma visibilidade enorme para quem sempre esteve invisível. E ele invisibiliza as causas da violência, as suas origens, e toda essa trama que tornou possível que esse fato ocorresse. Uma chacina é um fato social complexo e é tratado de uma forma binária, onde tem gente ruim e gente boa. Em geral, os que falam “que horror, um assassino” ou “olha como eu sou bonzinho e não faço isso” estão dizendo como essas pessoas, que são não civilizadas, agem. Essa exposição exagerada da violência como um fato em si, como um fato que se auto-explica, em vez de gerar uma indagação, ela cristaliza posições.

Assume-se o discurso que “eles são os violentos e nós somos pacíficos e temos que usar de todas as violências possíveis para conter os violentos”.


OP – E ainda tem a realidade de que se quem morre é uma pessoa da classe média, num bairro mais rico, a comoção é uma. Se quem morre estava na periferia, a repercussão é diferente...


Miriam Debieux – Os valores são diferentes. E há uma certa manipulação, porque o que acontece é que essas pessoas não só morrem como essa morte é apagada de significação, ela não é investigada. E muitas vezes a sociedade vê isso como um alívio. Isso corrompe os dois lados. Quando um jovem da periferia é encontrado morto, a primeira coisa que a Polícia fala é que era traficante ou bandido. Sem nenhuma prova disso. Porque isso já é o gatilho para que a sociedade pense que se livrou de alguma coisa que atrapalha.

No entanto, se uma sociedade não cuida do seu conjunto, ela se degrada por inteiro. As pessoas que estão do outro lado do muro e se sentem muito valorizadas, especiais e inteligentes, quando estão vivendo essa cisão estão permitindo que seu país, sua sociedade crie essa divisão. Que democracia é essa? Que sociedade real é essa que vivemos?


OP – E qual o efeito futuro disso?


Miriam Debieux – Temos na Segunda Guerra uma pista. Isso foi feito com os judeus. Os alemães até um certo tempo permitiram que isso ocorresse, isso foi se naturalizando, a perseguição. E a Alemanha se tornou um país nazista, onde todos os alemães também eram tratados como massa de manobra para uma conquista. Uma sociedade de guerra. É uma sociedade que se funde numa lógica de guerra. Nós nos protegemos dos perigosos. E a lógica de guerra é totalitária, separa os bons e os maus, onde a população se arma e não se educa. Que sentido tem uma civilização onde a cultura social tem na sua base uma cultura de guerra?

 

Ceará


A VIOLÊNCIA atual vivida no Ceará, que inclui chacinas e índices de homicídios alarmantes, é resultado de diversas outras violências invisibilizadas.


Prêmio Jabuti


MIRIAM DEBIEUX , ganhadora do Prêmio Jabuti 2017, é autora do livro “A Clínica Psicanalista em Face da Dimensão Sócio-Política do Sofrimento”. Atualmente é professora-doutora da Universidade de São Paulo na Graduação e na Pós-Graduação em Psicologia Clínica.


Colóquio


A PSICANALISTA esteve em Fortaleza, em abril deste ano, para participar do I Colóquio: A Psicanálise à luz do contemporâneo: novas figuras do sujeito, outros espaços de inserção, na Unifor.

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