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Engenheira Zita Timbó sabe "fazer água"
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Engenheira Zita Timbó sabe "fazer água"

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Foi a adrenalina dos desafios que estimulou o percurso de Zita Timbó, 63. A engenheira civil e integrante do grupo de segurança de barragens do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) percorreu caminho atípico para uma mulher. Da escolha pela Engenharia, ainda em 1974, até o comando da construção do maior açude do País, o Castanhão, Zita foi sempre aguerrida em busca da realização do sonho de ver o semiárido nordestino convivendo em harmonia com a seca.


O convite para comandar projeto dessa magnitude chegou para ela como forma de mostrar que engenharia não tem sexo e que teria mulher na obra, sim. Além de ter de lidar com as polêmicas envolvendo o Castanhão, Zita iniciou o trabalho nas obras quando o filho tinha somente nove meses de idade.


A engenheira, que é uma defensora do Dnocs, é também uma apaixonada pelos projetos de barragens. É que além da questão tecnológica e hidráulica, a vivência também lhe traz o impacto social de ter de “fazer água”, coisa que, segundo ela, os nordestinos sabem tão bem. E é por meio desse aprendizado que Zita, a mulher engenheira, dialoga até hoje com as mulheres do semiárido nordestino.


O POVO - Como foi a escolha pela engenharia?

Maria Zita Timbó - Quando eu decidi fazer vestibular, em 1974, a gente tinha duas escolhas: ciências e humanidades. Dependendo da classificação no vestibular, você escolhia o devido curso. E a engenharia por influência de um irmão muito querido. Meu pai era um intelectual, historiador. Eu nasci no meio de pessoas que estudavam muito, era uma família de oito irmãos. Nossa diversão era estudar, estudei minha vida inteira no colégio das irmãs Doroteias, lá eu aprendi muito e eu já sabia que queria alguma coisa na área tecnológica. Eu decidi em conversa com meu irmão Amauri Araújo, que era engenheiro, era meu espelho de seriedade e competência, e ele me atentou sobre a importância da engenharia. Eu perguntava para ele sobre a inserção da mulher na engenharia, se seria difícil. Ele dizia que ia ser um desafio e disse: “Você gosta de desafios? Eu sei que você gosta de desafios!”. Minha mãe pediu para eu escolher medicina, porque estava junto com engenharia, mas eu me desculpei e disse que não poderia fazer o desejo dela. Medicina não tinha nada a ver comigo. Eu queria mesmo engenharia civil. Eu fiquei receosa, mas deu para eu entrar com sobra. E eu fiquei muito feliz

 

OP - E a trajetória ao longo do curso?

Zita Timbó - Foi maravilhosa. Eu me empolgava muito, sempre gostei muito de física, matemática e todas as áreas tecnológicas. Eu sempre me dei bem, não tive dificuldade. Claro, a gente estudava muito, muito mesmo.

OP - A senhora sentiu algum preconceito?

Zita Timbó - Sim, sem dúvida, até na brincadeira de meus colegas. Éramos seis mulheres, foi na época a turma que mais tinha mulheres. As anteriores só tinham uma ou duas. Hoje eu tenho muito orgulho disso. Nós somos muito unidos, uma turma muito unida, a gente se encontra sempre. Esse ano vamos fazer 40 anos de formados. Os meninos brincavam muito com a gente. Diziam que não conseguiríamos aguentar. Mas era na gozação, porque eles sabiam que todas nós éramos parceiras, companheiras, colegas. Eles tinham muito respeito. Mas naquela época tinha muito preconceito, ainda estava com resquícios da ditadura na UFC (Universidade Federal do Ceará), então você imagina. Mas eu tenho um carinho enorme pela UFC e concluí o meu mestrado em Gestão de Recursos Hídricos lá com a minha pesquisa “O Desenvolvimento Sustentável de Regiões Semiáridas do Brasil e dos Estados Unidos: O Papel do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) e do United States Bureau of Reclamation (Usbr)”, fazendo um comparativo das duas instituições.

 

OP - Como a sua engenharia se encontrou com a área hídrica, a área de barragens?

Zita Timbó - Eu já tinha a influência do meu irmão que me levava sempre para conhecer as barragens. Ele era assessor do diretor geral do Dnocs. Eu comecei sendo estagiária por dois anos no Dnocs. O vínculo com a instituição sempre foi muito grande na minha vida. Vim estagiar com pessoas competentíssimas, pessoas de profundo conhecimento. Me formei em 1978, trabalhei em uma empresa que estava fazendo um estudo sobre o Baixo Acaraú, aprendi muito com eles. Então fiz o concurso, passei e entrei no Dnocs dois anos depois que me formei, em 1º de fevereiro de 1980. Eu já entrei no setor de barragens e tive a oportunidade de trabalhar na fiscalização da maior obra na época que era a Barragem Armando Ribeiro Gonçalves, no Rio Grande do Norte, que hoje se chama a barragem do Assu. O fato de trabalhar no setor de barragens foi fantástico para mim porque eu comecei no setor que era o mais ativo na época e o mais importante porque tanto fazia a execução como o controle das obras. Nessa época, não tinha essa divisão mais detalhada de acompanhamento da questão de recursos hídricos separado da barragem, era junto. Eu me encantei com isso. A gente viajava quase toda semana para o Assu para fiscalização. É uma visão holística. Isso que me encantou em barragens. Você vê praticamente tudo da engenharia e ainda vê o fundamental que é o lado social. Além da hidráulica, hidrologia, você vê toda a necessidade e o quanto aquela água é preciosa para aquela região. E depois do Assu trabalhei em várias outras barragens.

 

OP - O que a senhora viu nesses lugares?

Zita Timbó - Foram muitas aventuras nesse meio tempo e isso me dava adrenalina e vontade de fazer mais. No entanto, teve um período muito triste. Logo quando entrei estava naquele período de seca muito traumático, de 1979 a 1983, e eu fui participar também da fiscalização de uma obra de escavação de um canal no Orós, porque o nível estava tão baixo, que precisou fazer uma escavação de um túnel do Orós ao (açude) Lima Campos. Essa escavação não foi feita com máquinas, foi feita com pessoas, para gerar emprego para a população que passava por uma seca de cinco anos. Eu ficava muito constrangida, muito triste de ficar acompanhando aquele serviço, porque eles trabalhavam com escavação de rocha de grande porte, colocando em um carrinho de mão e transportavam essa rocha e não recebiam nem a metade de um salário mínimo. Às vezes eles pediam para trabalhar pela manhã e à tarde para poder ganhar duas vezes a merenda que davam: bolacha com rapadura. Esse foi o meu primeiro ano de trabalho no Dnocs. Eu choraaava. E ainda tinha outro problema, as viúvas com muitos filhos, também passando aquela fome enorme, não podiam ser alistadas, porque as mulheres não podiam fazer esse trabalho pesado mesmo diante da necessidade. Então eu ia visitá-las, elas choravam e eu chorava junto, porque eu não sabia o que fazer. Eu vivenciei isso e foi terrível. Você passava no caminho e todos com aqueles botijões de água esperando o carro-pipa, imagina isso há 38 anos, é uma situação muito crítica que hoje ainda se vê no Nordeste semiárido. Isso é uma das coisas que me constrangem muito, porque a gente ainda não conseguiu sair dessa dependência da água dessa forma. Eu gostaria muito de ver ainda o Dnocs fazer isso, e daí o meu trabalho junto à transposição do São Francisco. Porque eu acho que mesmo com toda a carência do rio São Francisco, que também está num nível muito baixo, a gente ainda pode fazer mais do que a gente faz no semiárido nordestino.

 

OP - Há o plano de a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) ser a gestora da transposição no Ceará.

Zita Timbó - Isso eu não concordo. A gente tendo um órgão como o Dnocs, com toda a expertise de 108 anos vivenciando esse trabalho. É certo que está esvaziado, precisa de sangue novo, se reestruturar, mas a Codevasf não tem essa expertise. Eu trabalhei cinco anos na Codevasf, servindo ao Ministério da Integração. É uma empresa extremamente competente, mas dentro de áreas que têm água para irrigação, rios perenes, é muito diferente. Aqui no Nordeste a gente usa o termo “fazer água”. Para usar essa água, a gente tem que fazer água, que é exatamente construir uma barragem. E o Dnocs já tem esse desenho há muito tempo. Graças a Deus estamos na fase final da transposição, mas ainda falta muita coisa.

 

OP - A senhora acha que a gente consegue para 2018?

Zita Timbó - Sim. Tem que conseguir, não tem outra alternativa. O semiárido precisa da transposição. Nossos açudes estão secando, Você, por exemplo, vê o Castanhão, está com pouco mais de 2% (da capacidade).

 

OP - Como é ver o Castanhão com essa reserva?

Zita Timbó - Extremamente preocupante. Eu represento o Dnocs como membro titular do Conselho Estadual de Recursos Hídricos, e foi tomada uma decisão extremamente acertada pelo conselho e o secretário (dos Recursos Hídricos): nós só vamos voltar a retirar água do Castanhão quando tiver aporte na barragem. Você vê os problemas que tivemos por conta desse esvaziamento rápido...

 

OP - A senhora diz a fissura?

Zita Timbó - Ela foi um dos problemas desse esvaziamento rápido. Há duas coisas muito importantes em barragens: é o enchimento rápido e o esvaziamento rápido. O Castanhão já passou pelas duas coisas e sem maiores problemas, porque as barragens do Dnocs são muito bem feitas, nós temos muito critério na execução. Pode acontecer, em qualquer barragem do porte do Castanhão. Ele é da altura de um prédio de 33 andares.

OP - Como foi coordenar uma obra dessa magnitude?

Zita Timbó - Eu era a chefe do monitoramento de todas as ações no Nordeste no Ministério da Integração. Nessa época, recebi um convite para vir para cá trabalhar com o secretário dos Recursos Hídricos e, depois de muito tempo, recebi o convite para ser gestora na 2ª DR do Dnocs e também para ser presidente das obras do Castanhão. Eram as duas coisas, dois desafios enormes. Eu não era a principal gestora. Era a substituta, porque eu não daria conta do Castanhão. Só assim aceitei, porque presidir a maior obra de barragens do Dnocs era realmente uma honra e um desafio enorme. Nós éramos seis fiscais, só eu de mulher, e o desafio se tornava maior ainda. Eu fiquei como presidente das obras e comecei os trabalhos desde o canteiro de obras.

 

OP - Nessa época a senhora tinha acabado de ter filho, não foi?

Zita Timbó - Eu tinha um filho com nove meses, essa sim era uma questão. Mas, graças ao meu marido, que era meu companheiro de todas as horas, Eisenhower Braga, ele era engenheiro agrônomo da Funceme, infelizmente faleceu faz sete meses. Graças a ele, eu pude mostrar esse desafio de uma mulher comandar a maior obra de barragem construída no Brasil naquela época. E a gente iniciou desde o canteiro e, ao mesmo tempo, fazendo a escavação do vertedouro, a base de dinamite. Eu tive um desafio... Me incomoda profundamente ver todos os canteiros de obra sem uma árvore, que era o que acontecia muito aqui no Nordeste, e pensei em fazer diferente. Decidi transplantar carnaúbas. Fizemos um showroom, para colocar uma maquete para as pessoas, antes de conhecerem o Castanhão, terem ideia do que significava a obra. Plantei cajueiros. Deu uma cara de canteiro de obras com mulheres dentro. Além disso, eu conversei com a construtora e nós fizemos um projeto para alfabetizar os trabalhadores da obra. Tinha uma professora e ela alfabetizava o pessoal local que quisesse ser alfabetizado. Claro que a gente não ia impor. Isso foi uma coisa muito importante e eu acho que toda obra deveria ter isso, principalmente no Interior. Ainda existem muitas pessoas que trabalham duro em construção civil e outras obras que não sabem ler e nem escrever. Só sabem fazer o básico e são pessoas inteligentíssimas. Se você dá a ele a chance de saber ler e escrever, você pode ter um profissional de grande gabarito e isso é pra vida deles. Eram cerca de 1.200 profissionais. Tudo era gigantesco no Castanhão, a oficina, os carros, os caminhões. E eu, baixinha que sou, batia na metade do pneu do caminhão...

 

OP - Nada nessa grandiosidade assustou a senhora?

Zita Timbó - Não. O que me fez alavancar esse processo de querer ir para o Castanhão, mesmo com todos esses desafios, foi exatamente mostrar que não existe sexo para comandar uma obra como essa. Claro que eu tinha meus limites. Por várias vezes eu tinha que ir fiscalizar a dinamitagem e, no fim de semana, meu marido ia com meu filho e a gente ficava dentro da obra passando a noite toda ouvindo dinamite, dentro do canteiro. E ele ia com maior prazer, porque ele era meu parceiro (se emociona e chora). Isso me emociona muito. Ele era realmente um companheiro. Eu só pude fazer o Castanhão por causa dele.

 

OP - O Castanhão é uma obra com muitas polêmicas que vão desde a real necessidade do aporte de mais de 6 bilhões de metros cúbicos de água, a proximidade de Fortaleza, a alta evaporação. Como a senhora lidou com isso?

Zita Timbó - Eu sempre acreditei no Castanhão, no porte dele e em como foi projetado. Hoje o Castanhão está dando a resposta. Imagina se nós tivéssemos 12 pequenas barragens, como estaria Fortaleza. Você estaria tranquila bebendo a água? Não. Estariam todas as 12 (barragens) secas há muitos anos. A resposta quem está dando é a natureza é a hidrologia que está mostrando para todo mundo que se não fosse o Castanhão nós estaríamos numa situação muitíssimo crítica. As barragens de menor porte têm evaporação maior porque é uma relação proporcional. Tá certo que o Castanhão é um prato, mas é um prato muito grande. A área da bacia hidráulica do Castanhão é do tamanho da baía de Guanabara. Não tem a profundidade do Orós, mas o Orós serve como reserva estratégica para reservar a água e a gente usar a do Castanhão. É o Castanhão quem tem condições de fazer o que faz atualmente, de trazer água num canal de 250 km, de suportar todos esse anos. Você vê que é a primeira vez que vamos fechar as comportas auxiliares do Castanhão e esperamos muito. Se não tivéssemos o Castanhão, com o prato d’água que ele tem, a gente já estaria racionando há muito tempo.

 

OP - A senhora acha que deveria ter havido racionamento em Fortaleza em 2017?

Zita Timbó - Isso para mim é um pouco inusitado. Você viu a crise de São Paulo, houve racionamento. As pessoas aqui foram muito confiantes. Eu dei minha opinião no conselho, mas eu fui a minoria. A minha opinião é que paulatinamente o Castanhão já era para ter sido racionalizado. A gente chega com todas as reservas exauridas, mas isso é uma decisão tomada em conselho, a questão é que estamos na risca do giz.

 

OP- A senhora é uma defensora do Dnocs. Nesse momento de seis anos de abastecimento prejudicado, qual o valor do Dnocs? Qual poderia ser a atuação da instituição?

Zita Timbó - O Dnocs está extremamente sucateado, desacreditado. Esteve pior. Agora estamos com um gestor da área, engenheiro de recursos hídricos que conhece as coisas e tem lutado pelo Dnocs. Mas ele, sozinho, não pode fazer tudo. Muita coisa depende do Ministério da Integração, de apoio político, institucional. Minha dissertação termina exatamente com a proposta de reestruturação. É uma coisa simples, precisa de gente nova enquanto estamos aqui para repassar. A quem interessa o fim do Dnocs? Porque, aos nordestinos, não é. Então a solução é reestruturar. Nós somos o maior construtor de barragens do Brasil. Eu acho que o Dnocs não pode desaparecer da paisagem do Nordeste.

OP - Como a mulher que a senhora é dialoga com essa mulher do semiárido. Qual a relação de vocês?

Zita Timbó - Ah, maravilhosa. Eu fico arrepiada quando falo, porque eu consigo ouvi-la. Não tem quem ouça a mulher do Nordeste, porque é ela que realmente cuida de muita coisa, principalmente da água. É ela quem carrega a água na cabeça.

 

OP - A senhora lançou uma pergunta no começo da entrevista e eu gostaria de fazê-la. Por que, depois de tanto tempo e tecnologia, ainda sofremos tanto com a seca?

Zita Timbó - Por falta de gestão política e institucional. Porque o povo nordestino sabe fazer o que há de melhor e tem o profundo conhecimento de todas as questões para resolver a convivência com a seca. Jamais nós vamos conseguir superar essa questão, mas nós vamos conviver com ela. Não conviver com a morte, como ocorria antigamente, mas conviver racionalmente, de forma planejada e com recursos do Governo Federal. Não é que os nordestinos tenham que viver com o pires na mão, nós não precisamos disso. Nós somos trabalhadores capazes. As universidades nordestinas todas têm o conhecimento dos recursos hídricos como ninguém. Temos gente trabalhadora, gente competente, pessoas que sabem fazer gestão adequada. Gente que sabe “fazer água”.

 

Dnocs

A ENGENHEIRA civil Zita Timbó nos recebeu em sua sala, na sede do Departamento Nacional de Obras contra as Secas, em Fortaleza.

 

Acervo

ANTES, ela nos levou à biblioteca, onde é resguardado todo o acervo de estudos hídricos dos projetos no Nordeste.

 

Semiárido

PARA ELA, é a mulher do semiárido quem verdadeiramente sabe cuidar e administrar a água.

 

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