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A água nossa de cada dia
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A água nossa de cada dia

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Alvaro Sánchez Bravo, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Sevilha (Espanha) e referência no debate mundial sobre meio ambiente e sustentabilidade, parece dizer o óbvio nesta entrevista realizada entre o espanhol, o português e o barulho de pratos e de conversas, no mezanino do hotel onde esteve hospedado, há duas semanas, em Fortaleza. Ele trouxe ao Estado, onde veio debater as questões hídricas na Assembleia Legislativa e na Universidade Federal do Ceará, uma pergunta que atravessa os nossos últimos seis anos de seca: a água é um direito humano ou uma mercadoria?


A resposta, ainda que pareça óbvia, não é simples. A “luta pelo reconhecimento da água como direito humano fundamental”, sublinha o professor, é um problema da Espanha à China, da Rússia ao Brasil. “Tem que parar de privatizar a água”, ele traça. “A segurança hídrica tem que garantir o fornecimento de água em quantidade e qualidade suficientes para satisfazer as necessidades básicas de todos os homens. É assim, nesse sentido, não tem mais história”, defende.


Estudos técnicos e monitoramentos sérios (leia-se: a salvo das corrupções) são fundamentais para a sustentabilidade de que o professor fala. Ao poder público, ele une a educação ambiental para todas as gerações. “Água não se pode inventar. Só se encontra na natureza. Esta é a água do planeta, não tem mais”, reforça. “Se nossos avós, se nossos pais tivessem usado tudo, não estaríamos aqui. Algo tão óbvio. E, muitas vezes, o óbvio que está à frente é o que menos se percebe”, demonstra nesta entrevista.

 

O POVO – O senhor vem ao Brasil com uma pergunta: “Água: direito humano ou mercadoria?”. Em que momentos a água tem se tornado mercadoria? Por que o senhor nos traz esta pergunta?


Alvaro – Essa pergunta tem que ser trazida porque a água é um bem comum essencial para a vida e não está sendo outorgada para todas as pessoas do planeta. Em resumo, alguns têm muita água e outros não têm, praticamente, nada. E isso se produz porque a água está sendo considerada só uma mercadoria e tem sido convertida ao valor do preço, ao valor monetário; e não ao valor moral, da dignidade, dos direitos das pessoas.

 

Sopa de sal

 

OP - Que danos humanos e ambientais decorrem da transformação da água em mercadoria?

 

Alvaro – O primeiro é que não se garante o acesso universal à água. Em segundo lugar, que, muitas vezes, as outorgas não se controlam. Os caras tiram água e ninguém monitora. Se podem tirar tantos metros cúbicos por segundo, mas o pessoal tira o que tem. E, aí, há um impacto sobre os ecossistemas aquáticos. A água não é uma matéria morta, uma coisa parada... Assistência não só de água, mas de água de qualidade. Automaticamente, produz que haja ecossistemas aquáticos e terrestres diversos, que haja uma biodiversidade maravilhosa que, inclusive, muitas vezes, não se pensa nisso. Das águas de transição, quando rios vão desaguar no mar, essas zonas são, em todo o mundo, zonas riquíssimas de pesca, de alto valor ecológico e econômico. Se você corta, não chega água, há a salina. A água não flui e o rio se converte, literalmente, em uma “sopa de sal” e acaba com toda forma de vida.


OP - Progresso econômico – e, aqui, podemos ler agronegócio, hidrelétricas, complexos industriais - e consumo vital humano disputam a água? Quem vence?


Alvaro – O novo paradigma da economia, primeiro, foi desenvolvimento sustentável. Hoje, nos encontramos em um novo paradigma que se chama a economia circular – que, em matéria de água, é o que denominamos o ciclo integrado da água. Quer dizer, é o fornecimento, tratamento, uso, depuração e reuso. Hoje temos tecnologias para, com o mínimo volume de água, com perdas pequenas de infiltração e evaporação, praticamente, o mínimo pode ser usado. Quando você fala dessas coisas, muitas vezes, o cidadão pensa: a água da minha privada ou do meu vizinho vai reciclar e eu vou beber com toda química que tenha. Não é isso. São denominadas as águas cinzas, podem ser usadas para a agricultura, as indústrias, para limpar as ruas. Não precisamos abrir as torneiras de litros de água potável, de alta qualidade, em situação de escassez, e limpar. Também temos uma grande responsabilidade como cidadãos. Não é incomum que uma pessoa, num domingo, na porta da sua casa, lave seu carro. Mil litros de água potável. Quando falamos com este cidadão que, logicamente, não faz por má fé, o argumento, muitas vezes, é: eu pago. E o que vai acontecer no dia em que você não poderá pagar? Não terá? O novo paradigma do desenvolvimento sustentável é, precisamente, que o mercado, os direitos do desenvolvimento econômico têm, juntos, uma grande responsabilidade de futuro. É o que se chama responsabilidade intergeracional. Se nossos avós, se nossos pais tivessem usado tudo, nós não estaríamos aqui. Algo tão óbvio. E, muitas vezes, o óbvio que está à frente é o que menos se percebe.

 

Espanha

 

OP - Que principais problemas um país como a Espanha tem enfrentado em relação aos recursos hídricos?

 

Alvaro – Os problemas que temos, fundamentalmente, eu classificaria três. Um: os pântanos. Durante a ditadura, a matriz energética e de água para a agricultura, fizeram pântanos, e pântanos, e pântanos. Mas os pântanos têm uma vida útil. Então, há uma discussão sobre o que se vai fazer com isso. A Espanha avançou muito no tema da depuração de águas residuais. Um mandato expresso da União Europeia muito forte, para fazer essa economia circular de água. É verdade que essas instituições públicas estão fazendo um esforço, sobretudo, porque a União Europeia, se você não cumpre a legislação, eles te castigam no que mais dói, que é com dinheiro. E o peso do dinheiro da União Europeia, nos pressupostos dos países membros, é brutal. Outro tema é o tema dos transvases (transferência), muito grave. Espanha é o maior produtor da Europa de verduras, de vegetais. A riqueza é muito grande. Só que essa produção se faz em cultivos intensivos, embaixo de plásticos, bem no deserto de Almería. Imagina a inteligência, não? Tem que usar muita água. Essa água, há uma polêmica fortíssima, entre vários estados, Castilha de la Mancha e Múrcia... Os agricultores de lá, que ganham muita grana, “dá-me água, preciso produzir”... Isso tem gerado um conflito com Portugal, onde corre o rio Tejo. Porque, o uso intensivo da Espanha (o Tejo nasce na Espanha)... O impacto da agricultura, o impacto no abastecimento da população, os impactos sobre os ecossistemas são, sobretudo, os problemas que a Espanha tem que resolver seriamente.


OP – O senhor vê semelhanças entre as questões hídricas vividas em sua região e as existentes no semiárido brasileiro?


Alvaro – Sim, muito parecidas pelo seguinte: na Andaluzia, sul da Espanha, já na frente da África, temos um clima mediterrâneo, continental e, se havia alguma dúvida, as mudanças climáticas estão demonstrando isso. Andaluzia é um dos laboratórios da União Europeia para os programas de adaptação e mitigação às mudanças climáticas. E também sofremos por causa de seca. Eu conto como anedota: em 1995, eu estava concluindo a minha tese de doutorado, era o mês de julho. Em Sevilha, o mês de julho faz 45 graus. Uma seca muito grande, não havia ainda esse investimento em infraestrutura. Tínhamos, em uma cidade como Sevilha, com 600 mil habitantes, duas horas de água por dia, com 45 graus. Sempre conto, como anedota, essa experiência que vivi. Mas os problemas são parecidos com os que vocês têm.

 

Direito

 

OP – Nesse caso, em que há semelhança de problemas entre regiões distantes geograficamente, as soluções para a convivência com a escassez de água também podem ser compartilhadas, podem ser universais?

 

Alvaro – Claro. A água depende muito dos fatores geográficos, culturais, mas, logicamente, a luta pelo reconhecimento da água como direito humano fundamental, as soluções técnicas, a predição, o problema é o mesmo. Tem que parar de privatizar a água. Isso aqui, na Espanha, na Rússia, na China. Tem que ter o foco, primeiro, no cidadão. Tem que garantir o mínimo vital, entende? Isso acontece em todo lugar. O elemento fundamental também para a água e outras coisas é o dinheiro, o preço. E a briga é pelo preço: “Ah, a água está muito cara!”. E chega um político e diz: “Fiquem tranquilos, vamos baixar o preço”. E a gente aplaude. O argumento não é o preço. É porque existe esse preço e quem se beneficia com esse preço. Tenho imposto a pagar, é uma responsabilidade compartilhada por todos. Se os meus representantes democráticos controlam isso com um controle efetivo... Agora, se os meus representantes passam a enriquecer com a corrupção, eles não se preocupam, não controlam as concessionárias. Às vezes, o problema é de descontrole das concessionárias. O cara vende, ganha um monte de milhões e tchau. E também passa pela qualidade da água: a água está suja, tem um cheiro horrível, e a prefeitura, que é a titular, porque a outra é uma concessão administrativa, “Vá falar com a concessionária”... Não, você tem que monitorar, o poder supremo é do Estado. Agora, não interessa porque existem outros interesses mais fortes.


OP – Então, nós não teríamos um problema de escassez de água, mas de gestão dessa água?


Alvaro – Quando se fala em escassez de água, existem duas perguntas que têm que ser feitas: há escassez de água para quem e para fazer o quê? Os textos internacionais e os internos sobre água são muito claros: em situação de escassez, há uma ordem. O primeiro que tem que ser garantido é o fornecimento às populações, ao cidadão. Depois, agricultura, indústria... O problema é que não se faz isso. O problema é que o poder econômico das grandes empresas, das grandes multinacionais, que têm os políticos reféns porque são as grandes empresas que, via corrupção, pagam suas campanhas e os mantêm no poder, depois, o cara é refém e não tem coragem de falar para um poderoso de uma multinacional: “Não, não tem água, minha gente está morrendo de sede”. Você tem, aqui, o famoso conflito do Pecém. Tem que se respeitar a lei, e a lei diz muito claro: se não há água, em uma situação, primeiro, a gente tem que beber, tem que tomar banho, e cozinhar, e lavar roupa.


OP – O senhor conhece exemplos, no mundo, de boa convivência com regiões secas, semiáridas?


Alvaro – Há um exemplo claro: Israel. O Estado de Israel, depois da Segunda Grande Guerra, desenvolveu uma tecnologia espetacular que, hoje, se utiliza, na agricultura em todo o mundo. Eles têm aprendido a usar cada gota de água, literalmente, ampliado os cultivos hidropônicos sem água, com as raízes no ar. Inclusive, desenvolveram um sistema muito polêmico. Quando eu era jovem, se falava que era quase como um milagre, eu me lembro, que era fazer chover. Eles descobriram que, se você pega um avião e semeia, nas nuvens, um pó de alumínio, pode fazer chover. Claro que não é a solução, não se pode colocar todas as nuvens do mundo semeando (risos). Não temos aviões suficientes.


OP – O senhor assistiu ao filme Mad Max? O mundo, ou parte dele, já vive alguma guerra pela água, já estamos próximos desse cenário?


Alvaro – Eu acho que o cenário do filme, graças a Deus, não! Hollywood, como sempre, muito Hollywood, né? (risos). Mas sempre vai ter conflito pela água. Por exemplo: Israel com Palestina, os estados árabes, a situação do Mar Vermelho... Veja o que aconteceu na antiga Rússia. Havia um mar, chamava-se mar de Aral, hoje, já não existe. Você vê, no meio do deserto, uns barcos enormes. Barcos. Durante o desenvolvimento soviético, os caras secaram, literalmente, um mar inteiro, o mar de Aral, para a produção, em Rússia Central, de algodão. É uma das grandes barbaridades desconhecidas, não se fala muito.


OP – Como o senhor compreende a segurança hídrica em uma região como a nossa? O que ela abrange?


Alvaro – A segurança hídrica tem que garantir o fornecimento de água em quantidade e qualidade suficientes para satisfazer as necessidades básicas de todos os homens. É assim, nesse sentido, não tem mais história.


OP – Uma alternativa de garantia de água para os lugares secos do planeta tem sido a dessalinização, o aproveitamento da água do mar. Isso é viável em termos econômicos e ambientais?


Alvaro – A dessalinização é um tema útil, mas em circunstâncias muito concretas e excepcionais. Quer dizer, o futuro da água no planeta não pode ser a dessalinização. Por duas razões muito importantes: uma de natureza técnica e outra de natureza biológica. De natureza técnica, a dessalinização da água é um processo de osmose inversa e gasta um volume de energia espetacular. Um dos sintomas de mudanças climáticas sérios: estamos poluindo tudo, temos que queimar carvão, queimar gasolina, o uso de energia é bestial. E, uma vez que você consiga a água e tire o sal, esse sal forma o que chamamos salmoura, como uma sopa espessa de sal concentrado que, se você despeja no mar, mata tudo o que existe. Na Espanha, houve esse problema. Na Espanha, um governo levantou como grande (solução), “vão acabar com a água, não se preocupem, vou fazer dessalinizador por todo lado”. Por sorte, a União Europeia falou: nem pensar. Porque os impactos nos ecossistemas de transição são bestiais. Geralmente, os dessalinizadores se fazem na costa, perto da praia, depois, essa sopa concentrada de sal, você larga também no mar. De onde sai essa sopa, não cresce nada: não há peixe, não pode tomar banho... E, claro, para grandes volumes de água, é bestial, a solução: milhões de dessalinizadores. A produção seria tão grande, que as mudanças climáticas seriam amanhã. Aumentaria a temperatura em dois, três graus e acabou. Isso significaria, por exemplo, que cidades como Fortaleza, como Sevilha, na Espanha, ficariam, grande parte, embaixo d´água. Se inundariam porque o aquecimento derreteria as calotas polares e o nível do mar subiria três, quatro, cinco metros. O tema é bastante sério.

 

Transposição

 

OP – Aqui, estamos na expectativa da transposição do rio São Francisco. Como o senhor avalia essa solução?

  

Alvaro – O tema da transposição é muito polêmico, tem coisas a favor e tem gente contra. Eu, geralmente, não sou partidário das transposições porque, quando você faz uma transposição, como nós temos de Castilha para Múrcia, para produção de verduras, o que você transpõe, você elimina, tecnicamente, o volume de água morta. Os ecossistemas naturais vinculados à água se perdem, você leva água morta. Evidentemente, serve para beber, para limpar, para produzir. Tem que ver o impacto sobre a fonte matriz. Há duas posturas: a pessoa que recebe água, aleluia! A pessoa que sempre teve a água passando na porta e que, agora, tem um fiozinho de água, como vamos explicar? Porque o recurso é o mesmo, a quantidade de água é a mesma. Não vamos fazer o milagre da Bíblia da multiplicação dos pães e dos peixes. Se você tira água de um rio para abastecer outra zona, faz uma tubulação, em algum lugar, vai faltar. Vai ter gente que vai ver a água passar pela frente e não vai pegar nenhuma gota. Isso é o pior. É como se você tem fome e alguém te coloca no supermercado, mas com uma condição: você não pode pegar nada das prateleiras.

 

OP – Por onde devemos começar para ter a melhoria do acesso à água de qualidade?


Alvaro – Urgentemente, exigindo estudos sérios de qual a quantidade de água disponível. Exigindo um monitoramento sério e responsável, que o setor público exija das concessionárias um cumprimento estrito e exato das condições, que não aja abuso em relação à água. E, junto a isso, um trabalho importante de educação ambiental. Que se mostrem aos meninos da escolinha que água não se pode inventar, que não há nenhum procedimento técnico para fazer água. Conseguimos voar, conseguimos carros mais rápidos, conseguimos a cirurgia, conseguimos salvar a vida de muita gente, mas, infelizmente, não há nenhum procedimento tecnológico ou científico que crie água. Água só se encontra na natureza, água da chuva, ou dos lagos, dos reservatórios, dos mares. Esta é a água do planeta, não tem mais, não podemos inventar a água.


OP – O senhor aponta que o caminho da sustentabilidade se faz pela construção de uma ética ambiental. E o que envolve uma ética ambiental?


Alvaro – A ética ambiental é o que se chama as duas solidariedades. A solidariedade intrageracional e a solidariedade intergeracional. Quer dizer: nós todos temos que ser responsáveis porque estamos vivendo um momento histórico, que é o nosso. Dentro de cem anos, nenhum de nós estará mais aqui. Mas, se nós não pensamos no futuro, se eu sou um egoísta ou um hipócrita, “o futuro que se vire, eu não estou mais vivo”... Não é assim. Eu insisto: se nossa família tivesse pensado assim, não existiríamos.

 

Atuação

 

O PROFESSOR Alvaro Sanchez Bravo, além da Universidade de Sevilla, também tem o nome associado a instituições de pesquisa como a Associação Andaluza de Direito, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, a Agência Executiva do Conselho Europeu de Investigação (da União Europeia) e o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.

 

Modelo Israel


O BRASIL considera usar o exemplo de Israel sobre a preservação e o uso sustentável da água, destacado por Bravo, nesta entrevista. No último dia 28 de fevereiro, uma audiência pública debateu, no Senado, projetos de cooperação científica entre os dois países. A perda dos recursos fluviais, cada vez maior com o aumento dos consumos humano, industrial e agrário, é uma das principais preocupações do Brasil.

 

Deserto


O ESTADO de Israel, que completará 70 anos de fundação em maio de 2018, sofre com a escassez de água desde sempre. Cerca oito milhões de pessoas vivem em um deserto, praticamente. Uma série de ações, de leis a recursos tecnológicos, tem garantido o abastecimento de água. Dessalinização da água do mar Mediterrâneo e reuso são outras estratégias para manter o abastecimento.

 

Escassez


NOTÍCIAS recentes, de 2015 para cá, alertam que a escassez de água já afeta mais de 40% da população da Terra. A informação é da Organização das Nações Unidas (ONU) que também lança outra estimativa preocupante: até 2025, 1,8 bilhão de pessoas estarão vivendo em regiões do planeta, absolutamente, sem água.

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