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Caminhos e conflitos sobre o futuro das cidades
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Caminhos e conflitos sobre o futuro das cidades

Mais habitantes em menos espaço, locais mais abertos e mais verdes. Assim Carlos Murdoch projeta o futuro das cidades. Realidade que depende dos confrontos políticos do agora
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Carlos Murdoch é arquiteto, urbanista, professor universitário e se tornou ativista político de uma concepção planejada de cidade. Em seu escritório de arquitetura, tenta levar a projetos tradicionais o olhar da sustentabilidade. Em sala de aula, difunde seu pensamento a uma geração que chega com visão mais consolidada sobre a concepção de espaço urbano para as pessoas e integrada ao meio ambiente. Para além da crítica, decidiu partir para a ação política. Em 2016, concorreu a vereador do Rio de Janeiro pelo PSDB, partido que não era sua primeira alternativa. Em passagem por Fortaleza na semana passada para participar do seminário “Cidade, memória e os desafios do modo de viver”, ele conversou com O POVO sobre dilemas da capital cearense e das metrópoles pelo mundo.


O POVO - O senhor esteve em Fortaleza há 20 anos. De lá para cá, a Cidade ganhou mais de 600 mil habitantes e a dinâmica urbana mudou.

O Centro tinha papel preponderante na economia e isso começa a se deslocar para outros bairros. Novas centralidades surgiram. Isso tem relação com a nova configuração de cidades neste início de século?

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CARLOS MURDOCH - Como é o padrão brasileiro de crescimento de cidade? Imagina que você tem uma mesa e abre uma lata de leite condensado. Ele começa a se espalhar na mesa. Consegue visualizar? Temos um padrão que se espalha horizontalmente. Assim as cidades brasileiras se desenvolveram, principalmente da década de 1950 para cá. Isso gera vários problemas, um deles é a carga sobre a infraestrutura. Leia-se água, esgoto, transporte e estradas. O que parecia solução, no primeiro momento, foi uma adaptação, justamente pela falta de planejamento. Acabou se tornando nosso problema, nossa cruz atual. Temos essa cidade extremamente espalhada. Fortaleza experimentou crescimento populacional significativo em mais ou menos 25 anos. O próprio sistema urbano começa a tentar se curar. Como ele se cura? Favorecendo a criação de centralidades. Fica uma qualidade de vida muito ruim para quem mora na periferia se deslocar, fazer movimento pendular, ir e voltar todos os dias. Naturalmente se criam essas subdivisões e centralidades. Em paralelo a isso, temos o mercado imobiliário de olho nesses movimentos e, muitas vezes, fomenta determinado crescimento, instalando eventos urbanos, como shoppings centers ou grandes empreendimentos. Foi fenômeno que assistimos não apenas em Fortaleza, mas em outras cidades, como Rio de Janeiro.


OP - O que significa gerir, do ponto de vista do custo, essas cidades tão espalhadas?


MURDOCH - É uma questão de custo, mas vou te dar uma boa notícia: nós já sabemos o final da equação do problema. Fortaleza tem mais ou menos 2,7 milhões de pessoas. Em 2043, a população do Brasil vai parar de crescer. Fortaleza vai oscilar próximo a esse desenvolvimento do Brasil. Olhando essa curva de crescimento demográfico, Fortaleza deve estagnar com 3,5 milhões de habitantes, lá por volta de 2040. A não ser que tenhamos um grande boom econômico, porque aí podemos ter uma variação maior. Então, se eu já sei que 3,5 milhões de pessoas vão morar aqui em Fortaleza, posso intuir qual a classe social e qual o perfil de consumo que essas pessoas vão ter. Posso controlar muito melhor como essa cidade vai se desenvolver de hoje para 2030, 2040.

Na realidade, agora é uma questão de sentar e planejar, porque temos todas as ferramentas. Nunca foi tão fácil. Coisa que no século passado não tínhamos, hoje em dia está muito razoável fazermos um planejamento coerente para o futuro. Nesse planejamento, devemos sempre considerar o adensamento das cidades, a diminuição das distâncias e dos espaços. Nesse momento, você compacta a cidade.

Compactar não significa fazer uma hiperpopulação, como Copacabana, no Rio de Janeiro, mas ir por uma densidade similar à que o Banco Mundial recomenda, de 300 habitantes por hectare. Quando pensamos dessa maneira, vemos um horizonte. Uso misto: diminuir os muros, abrir a rua para a cidade. Mas você vai falar que é impossível abrir os muros porque haverá uma invasão. O espaço inseguro na cidade está relacionado à falta de uso. Quando bota um muro, você cria a falta de uso para esse muro. É ali que a pessoa que mora na rua vai fazer sua casa, é ali que vai ficar mal iluminado, é ali que o assalto vai acontecer.

Temos de abrir. Uma cidade segura é onde todo mundo se vigia, onde você não tem ponto cego, mal iluminado, que favoreça o crime. Uma cidade mais aberta vai ser muito mais segura. Falando de saúde, nos bairros mais pobres, residências mal ventiladas geram problemas de saúde, que sobrecarregam os hospitais. Isso acontece muito no Rio de Janeiro, aqui um pouco menos. A Rocinha, no Rio de Janeiro, uma comunidade com 200 mil pessoas, tem 15 vezes o índice de tuberculose do Brasil, justamente por essa falta de ventilação.


OP - É possível induzir as cidades a se tornarem mais compactas com legislações de ocupação de solo?


MURDOCH - A legislação vai desenhar a cidade daqui para fora e criar oportunidades para substituir muros que obstruem o ir e vir, e tornam a cidade menos democrática, por fachadas ativas. O que é uma fachada ativa? É uma que tem vida, loja, padaria, academia de ginástica, salão de beleza. Que tem uso, tem gente, tem pessoa. Esse é o caminho para gerar cidades mais seguras e mais humanas. Quando você pensa em trazer gente da periferia para cá, é você liberar principalmente o uso, que é a criação de edifícios mistos. Imagina se você pudesse ir a pé para o trabalho, se tivesse mais tempo para ver e cuidar dos teus filhos.

Acho que é o que todo mundo quer. E isso é possível porque mudamos o paradigma do século passado para cá. Hoje em dia, focamos nas pessoas e não nos automóveis.


OP - Mas, a política de uso e ocupação do solo leva tempo para ter resultado. Desenhando essa legislação hoje, isso vai se reverter numa nova configuração das cidades em quanto tempo? Estamos desenhando hoje a cidade de quando?


MURDOCH - Começamos a ver os primeiros efeitos em mais ou menos três anos. De uma forma superficial, em duas gerações já temos uma cidade melhor.


OP - Em Fortaleza, percebo em alguns setores já haver clareza da importância de áreas verdes, convívios em espaços públicos, mobilidade sustentável. Ao mesmo tempo, a expansão populacional se deu de forma desordenada e a insegurança deixa a cidade mais reclusa.

Sabemos onde queremos chegar, mas muitas vezes parecemos caminhar no sentido oposto. Qual a cidade que devemos ter no Brasil no futuro? Para onde estamos caminhando, para o paraíso de convivência ou para o caos urbano?


MURDOCH - Gosto muito de uma historinha que diz que todo mundo nasce com um lobo mau e um lobo bom, cada um de um lado. Vai ganhar é quem você alimentar mais. Simplesmente o fato de estarmos tendo seminários como esse (”Cidade, memória e os desafios do modo de viver”, do qual Murdoch participou na semana passada), o fato de colocarmos esses assuntos na mesa já é um sinal de paradigma. Nas décadas de 1970 e 1980 se falava muito pouco sobre isso. Vi lentamente essa mentalidade começar a mudar. Em sala de aula, vejo que meus alunos estão um passo à frente de onde estou. Estão com essa visão completamente consolidada, não acreditam mais em retrocesso. Eles é que vão sedimentar e consolidar o futuro. Eu acho, com certeza, que estamos fazendo um paradigma. Agora, você comentou que parece que às vezes estamos andando para trás. Não acho que estejamos andando para trás. Sabemos que mudamos pelas gerações. Pouca gente muda muito durante a vida, pensa de um jeito A e acaba a vida de um jeito B. Saímos do A para o A e meio, não chegamos a pensar ao B. As pessoas têm tendência a manter o status quo. O mercado imobiliário sabe fazer negócios como os pais fizeram e como faziam há 20 anos e dava certo. Não entendem que algumas mudanças estão acontecendo. Mas, acho que já é um processo inexorável. Às vezes, essa mudança é muito lenta, lenta demais para nosso período de vida. Mas, tenho certeza de que o Brasil será outro em 2040. Estamos passando por uma crise e, quando estão em meio a uma crise, os chineses gostam muito de fazer uma festa. Dizem que a vida é uma roda e começa a melhorar quando você está no fundo. Acredito que estamos no mesmo caminho.


OP - Mas, esse caminho de cidades democráticas precisa ser construído. Se corre espontaneamente, o laissez-faire urbano, caminha-se para degradação e segregação.


MURDOCH - É uma coisa que a população tem de exigir dos seus representantes. Principalmente os vereadores, que fazem as leis. Exigir que entendam da cidade, não fiquem legislando sobre nome de rua, de praça ou botar árvore aqui ou lá. Não fazer uma política de varejo e sim de atacado. As pessoas precisam se envolver mais no plano político, queiram ou não queiram.


OP - Fortaleza tem 314 km² e 2,6 milhões de habitantes. Como é possível haver muita gente no território e mesmo assim ser uma cidade espalhada, não ser densa?


MURDOCH - Fortaleza pode ser uma cidade muito impermeável, assim como o Rio de Janeiro. Nos últimos trinta anos, o solo do Rio aumentou a temperatura em 15 graus, o que significa que a média de temperatura aumentou de 3 a 5 graus. Tudo isso pelo excesso de impermeabilização do solo. Substituímos verde por asfalto e concreto. Mas, você não tem uma cidade densa em Fortaleza. Pelo contrário, tem uma cidade extremamente rarefeita. Muito ocupada, muito asfaltada e muito loteada. Tem questões dos parques urbanos que não estejam ainda excelentes e consolidados. Tem muito espaço para consolidar e se apropriar como parque urbano que as pessoas possam usar.


OP - Fortaleza é uma cidade pequena em comparação a outras Capitais e tem uma população muito grande. Como se pensa a mobilidade dentro desse contexto?


MURDOCH - Temos que ter uma visão bifocal e olhar ao mesmo tempo para o futuro imediato e para o futuro lá na frente. Fortaleza é uma cidade que cresceu perifericamente e sempre com a base do automóvel, uma filosofia modernista. Vamos assumir o transporte de ônibus viário, mas será que ele está sendo feito de maneira correta? Paralelamente a isso, a legislação urbanística pode e deve começar a fomentar a descentralização de determinados serviços, com a criação de subcentros para as pessoas se deslocarem menos. Estamos na beirada de uma mudança de paradigma de trabalho, hoje é muito comum, em alguns países mais desenvolvidos, as pessoas trabalharem de casa. Estamos caminhando para um futuro onde teremos muitos trabalhos, muitos empregos, mas não serão exatamente empregos como nossos pais conheceram.


OP - A estrutura de trabalho faz parte da política de mobilidade.


MURDOCH - Com certeza. Ela vai alterar a política de mobilidade. E, outra coisa, qual a vocação da cidade de Fortaleza? Parece-me centrada em serviço. Isso ainda desloca, faz possível que tenhamos postos de trabalho descentralizados. Por que não posso colocar um call center numa região próxima aos meus funcionários, ao invés de colocar no centro só para atender meia dúzia de diretores? São coisas que vamos começar a rever.


OP - Sempre houve discussão muito grande em Fortaleza em relação à verticalização, inclusive em relação a bloquear o fluxo de ventos. Até que ponto vale a pena verticalizar para adensar sem comprometer?


MURDOCH - As pessoas não acreditam que o ar anda e que a ventilação é importante. Como carioca, uma das coisas que percebo é que Fortaleza é tão quente quanto no Rio, mas aqui é ventilado. Você percebe o ar andar, sente-se muito mais refrescado, isso dá um conforto maior. Tem truques para verticalizar a cidade e criar as possibilidades de passagem de ar. Tem de fazer edifícios mais permeáveis aos ventos e tem fazer um térreo também que seja permeável. Conseguimos simular isso em computador.


OP - Como é possível conciliar a expansão urbana e preservação do meio ambiente? É uma batalha perdida?


MURDOCH - Está todo mundo tentando responder à equação entre meio ambiente e cidade. Há 20 anos não se falava de sustentabilidade e a questão ambiental não era tão discutida. Hoje em dia, toda criança sabe que tem que poupar água, poupar material e reciclar lixo. Estou vendo essa mudança acontecer a olhos vistos. Nessa geração, nos próximos cinco anos, não vamos perceber a diferença. Porém, quando olharmos no horizonte 10 ou 12 anos à frente, vamos ver edifícios muito mais simpáticos e com integração cada vez maior do paisagismo e áreas verdes. Para ter uma ideia, tem alguns projetos, principalmente na região da Ásia setentrional, de edifícios com três vezes mais verde que a área que eles tiraram do solo. Estão devolvendo, em termo de vegetação, o que eles tiraram. Essa é a mentalidade que vai vir para o futuro.


OP - Que aprendizado se pode tirar de moradia popular em termos de experiências criativas de uso do espaço, como o uso misto em que a pessoa mora num lugar e bota a mercearia na frente da casa. É possível tirar lições construir uma cidade mais democrática e dinâmica?


MURDOCH - Quando queremos fazer uma arquitetura dita sustentável, sustentabilidade materiais, uma arquitetura que tenha conforto ambiental e térmico, porque o calor talvez seja nosso maior inimigo no Brasil, a primeira coisa que aprendemos a fazer foi olhar para a habitação popular. Durante anos de história, ela vem experimentando soluções, tanto em material antitérmico quanto em desenho, influências e espaços. Foi processo lento, porém seguro de tentativas de se chegar a uma casa ideal muito barata. Temos muitas lições a aprender com arquitetura popular, que no meio acadêmico chamamos de arquitetura vernacular. Da mesma forma, esse aparente caos que vivemos nos bairros mais populares é extremamente rico em termos de vida e de economia criativa. As pessoas conseguem sobreviver apesar de todas as condições dizerem não. Conseguem sobreviver, organizar-se sendo solidárias. O sujeito mora e trabalha no mesmo lugar, ele abre a lojinha lá embaixo, não tem excesso, não tem luxo.


OP - O senhor discutiu o VLT (Veículo Leve Sobre Trilhos) como transporte de massa. Fortaleza está em fase de testes do primeiro trecho do VLT, que deve ligar uma área periférica à orla. Como o senhor analisa essa experiência do VLT?


MURDOCH - O VLT, na minha opinião, é um grande golpe. É um bonde de roupa nova. No Rio de Janeiro fizemos as contas e, se o VLT funcionasse de uma maneira espetacular, cravado de três em três minutos tivesse uma passagem, iria transportar 8 mil hora/sentido no máximo. Isso se tivesse fazendo uma conta de lotação total do VLT.

Significa seis pessoas por metro quadrado. Essa é a densidade de você entrar no seu banheiro e convidar mais cinco para tomar o banho com você. Caso acontecesse essa hipótese de estar sempre hiperlotado, de passar cirurgicamente de três em três minutos, iria transportar 8 mil pessoas. Para um transporte ser considerado de massa, vai de 20 mil pessoas horas/sentido para cima. No caso do VLT do Rio de Janeiro se investiu muito dinheiro para transportar absolutamente nada. Percebemos no Rio de Janeiro que o VLT aconteceu apenas para valorizar uma determinada área da cidade. Foi uma jogada de marketing,


OP - O senhor tinha falado da importância da atuação política, o senhor foi candidato pelo PSDB no ano passado, como foi a experiência?


MURDOCH - A experiência foi fantástica. Eu conversei com diversos partidos. Acabei me candidatando pelo PSDB. Não foi minha primeira opção, estava atrás das pessoas do antigo Partido Verde, estruturado no Rio de Janeiro, que são pessoas como eu. Na véspera do limite, me ligaram perguntando se eu queria ir o PSDB. Fui muito bem tratado. O PSDB não é um grande partido do Rio de Janeiro. Esquecendo as questões do partido, as coisas que defendemos devem ser suprapartidárias. Por isso, muitas vezes me vejo conversando e me dou muito bem com ativistas do Psol. Essas questões urbanas todos nós concordamos. Acho que essa é a mentalidade que temos que levar agora. Esses problemas atingem a todos, não é a A, B, C ou D.

 

Perfil

 

Urbanista, arquiteto e professor universitário, Carlos Murdoch tem 53 anos. Mestre em sustentabilidade aplicada à arquitetura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem experiência pedagógica para além da arquitetura e ministra disciplinas de pós-graduação em gestão (Fundação Getúlio Vargas) e economia (UFRJ). Mantém também escritório de arquitetura. Diz não ter planos de concorrer nas eleições do próximo ano, mas pretende voltar a concorrer a vereador em 2020. Sua intenção é fazer política vinculado à questão urbana.

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PERGUNTA DO LEITOR


Campelo Costa, ex-presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB)


CAMPELO - Como podemos fazer uma ofensiva para estabelecer compromissos de transformação da nossa realidade, tanto brasileira como em cada um dos lugares em que vivemos?


MURDOCH - Acho que se criou um vício, principalmente nas universidades federais, onde as pessoas não conversam. A luta por poder talvez seja inerente à nossa formação cultural. Quero sedimentar, eu quero meu grupo, quero meu canto e vou ficar aqui escondido num bunker e vou conseguir pontuar com a Capes, vou pesquisa e me fingir de morto. Temos que ir ao MEC, à Capes, e exigir mecanismo para que não se pontue apenas o artigo que às vezes é requentado 500 vezes. E sim o que você fez para a sociedade hoje. Acho um absurdo não termos, até hoje, a casa mais barata e sustentável para se comprar em Fortaleza, uma coisa que nossa querida academia já deveria ter fornecido. O padrão mais barato é esse aqui, com esses materiais e esse kit custa tanto. Temos de entregar a universidade dentro das comunidades e às pessoas que precisam.

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