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A Educação precisa ver além de habilidades cognitivas
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A Educação precisa ver além de habilidades cognitivas

Pesquisador do Instituto Ayrton Senna, o belga Filip de Fruyt diz que o século XXI exigirá mais das crianças. E trabalhar as habilidades socioemocionais é fundamental
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Novas formas de ser, pensar, trabalhar, se relacionar... o futuro ainda é incógnita, mas já é possível traçar a melhor maneira de superar os desafios que a sociedade terá. Grande parte desse preparo está na educação, nas salas de aula. É assim que o professor da Universidade de Ghent, na Bélgica, Filip De Fruyt, enxerga o alicerce do mundo. Para além do cognitivo, as escolas e os professores precisam focar nas habilidades socioemocionais. Sentimentos, talentos e comportamentos que podem mudar perspectivas individuais e coletivas. Filip afirma o que as pesquisas já confirmam: o desenvolvimento de uma ou duas habilidades que apenas um indivíduo possua, o fará ser diferente. Assim como exige a incerteza futura.


O POVO - O que são habilidades socioemocionais?

FILIP DE FRUYT - São um conjunto de características do indivíduo que continuam a se desenvolver ao longo da vida, não apenas na infância. Essas habilidades se referem a comportamentos, pensamentos, sentimentos das pessoas. Realmente, afetam resultados bastante importantes, que podem ocorrer no começo da vida, mais tarde, ou muito mais tarde.

OP- Quais são os exemplos dessas habilidades na prática?

FILIP - Bem, se tivermos um conjunto de habilidades socioemocionais bem desenvolvidas, isso vai ajudar as sociedades a funcionarem melhor. Vai ajudar as pessoas a serem mais felizes em suas vidas pessoais e a construírem relações próximas com outras pessoas, com vizinhos, no local de trabalho, e assim por diante.
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OP- E a construção dessas habilidades começa na família, ainda na infância?

FILIP - Há certas predisposições genéticas quando você nasce, quando vem à vida. Esse é o nosso primeiro ambiente realmente importante, a família em que você cresce. Mas, ao lado da família, você também tem a vizinhança imediata, o grupo de colegas e, mais tarde, quando está na escola, tem o grupo de colegas de sala. São todos ambientes que impactam verdadeiramente no desenvolvimento das habilidades socioemocionais. A escola é um playground interessante para, literalmente, se exercitar e desenvolver as habilidades socioemocionais.

OP - E por que a grande maioria das escolas não trabalha isso?

FILIP - Pelo menos está na pauta de vários países e isso se deve principalmente ao fato de que as pessoas perceberam que é importante desenvolver não apenas as habilidades cognitivas, mas que precisamos cuidar também do desenvolvimento das habilidades socioemocionais, porque os desafios nas sociedades estão aumentando. Temos de estar preparados para vidas um tanto quanto complexas, e o emprego é parte disso. É claro que os pais têm função nisso, mas a educação tem esse conjunto de habilidades em pauta, porque a educação tem de preparar as pessoas para o futuro. Por exemplo, a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) está interessada (nessa questão) agora. O Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) e todos esses estudos que investigam a alfabetização, o desempenho em matemática, esses tipos de indicadores, começaram a perceber que tinha de ampliar isso com a atenção às habilidades socioemocionais.

De certa maneira, nossos professores já vêm fazendo isso há muito tempo. Vemos que o professor tem de prestar atenção nas habilidades socioemocionais dos alunos, pois percebe que há diferenças enormes entre os alunos de sua sala, e ele tem que focar nelas, não no que vocês chamam aqui no Brasil de “educação integral”. Deve-se focar na criança.


OP - A educação integral é indicada como ideal, solucionadora de vários problemas sociais.

FILIP - Bem, eu acho que deve ser uma abordagem holística — eu prefiro esse termo. Na qual você olha, na verdade, para a criança como indivíduo que está se desenvolvendo. Levar em consideração todas as habilidades e diferenças que atuam neste indivíduo em particular e pensar como ele vai se desenvolver e formar uma identidade a partir daí. Isso é o que devia ser foco na educação, eu acho. Nós nos preocupamos, como pais, que nossas crianças se desenvolvam como indivíduos, que estejam realmente preparados para os desafios do futuro, e a educação — é claro que, como pais, temos de contribuir com isso — já vem fazendo isso por algum tempo. Mas a atenção não era sistemática. Quando eu era aluno, só se prestava atenção a duas ou três dessas habilidades, e isso nem era feito de maneira explícita. Então, nós nos desenvolvemos e hoje pensamos no que poderia ser um trabalho mais taxonômico (de Taxonomia, ciência que classifica os seres vivos). Esse é o tipo de noção que realmente precisamos trazer para a pauta das habilidades socioemocionais também, porque, de uma maneira ou de outra, você terá que trabalhar de maneira sistemática. Na educação, no desenvolvimento das habilidades, você realmente precisa conhecer todas as partes que são importantes para ligá-las aos resultados e características socioemocionais mais tarde. Podemos pensar na longevidade, em como as pessoas vivem juntas, na cidadania, nos desafios ambientais, comportamento ecológico, sustentabilidade, sociedades multiculturais, e assim por diante.
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OP - Essas habilidades socioemocionais são especialmente relevantes no século XXI. O que há de novo neste século?

FILIP - Cada era tem seus desafios. Antigamente, quando as pessoas realmente tinham que se preocupar em obter comida, proteção, etc., era bem diferente da situação agora. Falando em uma perspectiva belga, sempre penso na minha mãe, que cresceu em uma família muito pobre. Ela me contou sobre o período pós-Segunda Guerra Mundial. As pessoas na Bélgica não tinham de fato uma boa posição, havia muita pobreza. E ela recebia uma colher de banha de baleia na escola para sua nutrição. Então, pense nisso: 40-50 anos atrás, as pessoas iam às nossas escolas na Bélgica, na famosa e rica Europa Ocidental, e recebiam uma colher de banha de baleia porque isso era considerado importante para o desenvolvimento cognitivo. Agora, os desafios para o século XXI são múltiplos e um deles é que acabamos em sociedades muito mais complexas, o que nós fazemos ficou mais rápido. Isso traz muitas mudanças, muitos desafios, muito estresse para as pessoas, que vão precisar organizar seu trabalho de maneira muito diferente. Surgem novas questões, novos mercados. Nós também temos o problema que nos é posto em termos de sustentabilidade. Precisamos cuidar e proteger o meio ambiente. Temos carreiras mais longas, então teremos de trabalhar mais. Muitas pessoas simplesmente aprendiam um trabalho e o faziam pelo resto de suas carreiras. Hoje, estamos trazendo pessoas ao mercado de trabalho ou preparando pessoas nas escolas provavelmente para empregos sobre os quais não temos ideia se existirão em 20 anos. Isso implica que devemos preparar os nossos jovens e alunos para lidar com isso tudo.

OP - E como isso impactará na vida, nas famílias?

FILIP - Também há a questão do equilíbrio entre trabalho e vida. Há outras alfabetizações que estão se tornando cada vez mais importantes. Uma dessas é a financeira. Você está trabalhando com um telefone celular, mas sendo capaz de fazer todas as transações financeiras de que precisa e inspecionar seu cartão de crédito e seus depósitos, suas negociações, se você precisa de um empréstimo do banco... todas essas são habilidades que as pessoas têm de aprender de um jeito ou de outro. Também tem a ideia de que temos certa responsabilidade pelo nosso bem-estar, pela boa forma física. Você precisa estar em forma, porque isso afeta como você se sente.

OP - É preciso encontrar tempo para esse bem-estar, principalmente dentro dessas outras questões de emprego, de mercado de trabalho, de dinheiro...

FILIP - Você tem de encontrar tempo pra isso, então, tem a ver com a organização. Ao mesmo tempo precisamos ser um pouco modestos também, eu acho. Não precisamos ser os melhores em tudo. Ninguém é.

OP - Temos de achar, nesse turbilhão, aquilo que gostamos de fazer, que nos deixa feliz?

FILIP - Exatamente. Isso é uma das coisas que as pessoas não enfatizam o suficiente. Mas, eu penso que o movimento do século XXI tem a ver com desenvolver sua própria individualidade e tentar descobrir do que você gosta, no que você é bom, e de fato partir daí. Eu realmente acho que esta é uma grande peça do quebra-cabeça, algo em que devíamos realmente focar.

OP - O que a escola pode fazer em relação a essa busca individual?

FILIP - A escola precisa criar o tipo de ambiente no qual uma criança ou aluno de fato possa ver, brincar e explorar seus talentos. Uma vez que isso for identificado, então, pode-se ir em outra direção. Mas é por isso que defendemos o foco em conjunto de habilidades mais amplo. Quanto mais amplo for esse conjunto, mais equipado se estará para enfrentar os desafios que virão mais tarde. Porque, neste momento, podemos não ter uma boa ideia sobre quais serão os desafios no futuro.

OP - Que tipo de descobertas científicas existem sobre as habilidades socioemocionais?

FILIP - Eu realmente acho que a ciência já pode dizer muita coisa, não apenas sobre a importância das habilidades socioemocionais, mas também sobre a associação delas. Há resultados muito, muito diferentes. Eles podem variar desde resultados educativos, de empregabilidade, mas podem ser de bem-estar físico, ou estar relacionados ao comportamento de cidadania.

E isso, é claro, requer pesquisa intensiva. Muitos grupos de pesquisa diferentes estão tentando estabelecer pesquisas mais longitudinais, porque essa é a parte difícil. E isso requer dinheiro e capacidade. Alguns grupos de pesquisa. Estamos contribuindo para isso a partir do meu grupo de pesquisa em Gent, na Bélgica, e também com o EduLab21 (laboratório de ciências para educação do Instituto Ayrton Senna), onde estamos pensando em como podemos contribuir com essa pauta através de pesquisas. Visitamos algumas escolas na área de Fortaleza e, quando estávamos no ônibus com o pessoal que nos acompanhava, eles estavam dizendo: “Ei, estamos realmente interessados no que existe em termos de programas para regulação socioeomocional”. Porque muitos jovens estão lidando com ansiedade, ou sofrendo de baixa autoestima. Então, essas não são circunstâncias ideais para o aprendizado.


OP - Mas essa preparação do professor ainda não acontece...

FILIP - Bem, eu não conheço os programas de treinamento de professor no Brasil, mas, ao menos, na Europa Ocidental, muitos programas não têm uma seção específica focada nisso. É colocado aqui e ali, mas, por exemplo, não há um curso de 40, 45 ou 60 horas focado nisso. Acho que esse poderia ser um primeiro passo.

OP - Se tivermos esse tipo de discussão dentro da seara das políticas públicas, seria mais fácil criar essas condições para os professores?

FILIP - Eu vejo isso mais de um ponto de vista científico. Não sou legislador, e, claro, realmente acho que isso é algo que realmente devemos considerar. Quando estava no voo vindo pra cá, sabe aquelas demonstrações de segurança no avião? Então, elas lhe mostram, em um momento, se o avião tiver que pousar na água, você terá um colete salva-vidas, e uma das coisas loucas disso tudo, mas que, se você pensar a respeito, faz sentido, é que, se houver uma criança sentada perto de você ou com uma máscara de oxigênio, ponha primeiro a máscara no adulto e, depois, na criança. Eu comparo isso, de certa forma, ao que precisamos fazer com os professores. E o programa de treinamento de professores deve ser muito bem preparado antes de os professores terem de lidar com as habilidades socioemocionais, antes que eles tenham que dar oxigênio — entende? — para os alunos. Acho que é uma boa analogia de como temos que ter atenção aos programas de treinamento de professores neste assunto.

OP - O evento está dividido em pesquisa, fundamentação e execução. São pessoas de diferentes campos que muitas vezes não se comunicam. Qual a importância dessa junção?

FILIP - Gente de diferentes formações e profissões, gente das políticas e gente de uma perspectiva mais de pesquisa se juntam e trocam ideias. Mas, além disso, também acho que, para facilitar esta pauta, deve haver um processo de “todos juntos”. Isso é realmente um tipo de esforço colaborativo. Mas são os professores que estão bem informados sobre o que está acontecendo nas escolas, sobre as dificuldades locais. E isso é o que sempre pedimos ao grupo: não nos traga apenas o que, na sua percepção, são escolas com mais vantagens, mas queremos ver todo o espectro. Deve haver também uma discussão em que os pais e professores, e alunos estejam envolvidos. Acho que os alunos geralmente não são ouvidos nessas discussões, e tudo diz respeito a eles.

OP - Você conversou com alguns alunos? O que eles pensam sobre as habilidades socioemocionais?

FILIP - Sim, eu conversei. Ontem, um dos garotos, Emanuel, me perguntou de onde eu vinha, e eu disse que era da Bélgica. Aí ele disse: “Ei, você devia falar francês!” E ele começou a conversar em francês comigo. E aí veio outro garoto, Gustavo, com muito orgulho e, em inglês quase perfeito, ele se apresentou e me disse: “Welcome to my school! (Bem vindo à minha escola)”. Isso não é maravilhoso? Então, tem a ver com tudo isso, com uma troca. Eles tinham muito orgulho de falar sobre a escola deles, sobre como se sentem na escola e sobre os problemas, e como eles estão se saindo, com o que se ocupam...

 

OP - Qual mensagem você daria para os estudantes, para que eles possam identificar suas habilidades socioemocionais e desenvolver isso.

FILIP - Isso é interessante. Todo mundo pode realmente pensar em ao menos uma ou duas habilidades que gostaria de desenvolver mais. E, então, focar nisso. Tentar prestar atenção onde você está com esse tipo de habilidade e em que direção você quer se desenvolver. Para uma criança, pode ser, por exemplo, que ela fique bem melhor em se concentrar naquilo que está fazendo. Para outra, pode ser mais na área interpessoal. Não apenas como pai, é claro, você pode ajudá-lo um pouco, e o professor estar focado nisso. Mas é um processo de aprendizado realmente interessante que, como um indivíduo jovem cria esse tipo de autoconsciência sobre coisas que são importantes em certos momentos da sua vida e que podem ser muito diferentes para cada um. Acho que todo mundo poderia fazer parte disso, que terá um impacto no mundo. E todos teremos vidas melhores. Claro, sou entusiasta disso, mas também sou realista. Há muitas crianças e alunos que crescem em situações difíceis, mas eu verdadeiramente acredito que, se a educação pode ajudar nesse tipo de processo, que isso vai ajudar em suas vidas e a se tornarem bons pais para seus filhos no futuro. Acho que se uma sociedade puder contribuir com isso...

 

Entrevista originalmente em inglês, traduzida por Sara Oliveira e Gregório Oliveira (especial para O POVO)


EVENTO


SEMINÁRIO. FILIP PARTICIPOU DO SEMINÁRIO INTERNACIONAL COMPETÊNCIAS PARA A VIDA, PROMOVIDO PELA SECRETARIA DA EDUCAÇÃO (SEDUC), EM MAIO.

 

HABILIDADES


BASE CURRICULAR. AS HABILIDADES PARA A VIDA, QUE INCLUEM AS SOCIOEMOCIONAIS, SÃO CARACTERÍSTICAS DE ATITUDE, COMO LIDERANÇA E COMPETÊNCIA

 

CEARÁ


ESCOLAS. DE ACORDO COM A SEDUC, 160 DAS 700 ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO DO ESTADO POSSUEM PROGRAMA ESPECÍFICO DE PROMOÇÃO DESSAS HABILIDADES

 

PERFIL

Belga, Filip de Fruyt é psicólogo, professor e pesquisador da Universidade de Ghent, na Bélgica. É também líder da Cátedra Instituto Ayrton Senna. Ele esteve no Ceará para falar para gestores e professores sobre a importância das habilidades socioemocionais da educação. Pai de três filhos, consegue ver a diferença de comportamento em cada um deles. E trabalha com a melhor forma de aprimorar o que eles têm de melhor. Filho de uma belga que viveu a pobreza da Segunda Guerra, valoriza costumes, histórias e originalidade.


PERGUNTA DA LEITORA


Ileane Fernandes, 36, coordenadora escolar


ILEANE - O que é possível fazer na sala de aula, em relação ao trabalho das habilidades?

Filip - Eu ouvi falar que as turmas aqui no Brasil são grandes, entre 40 e 45 alunos. Você é professora e tem de lidar com 45 indivíduos bastante diferentes, todos com suas próprias histórias e problemas. É preciso criar uma estrutura e depois disso precisa criar um ambiente de aprendizado. Enquanto você terá pessoas contrariadas emocionalmente, terá outras relaxadas- ou relaxadas demais. Você precisa criar um ambiente de aprendizado a partir disso, e é muito desafiador.

 

MULTIMÍDIA

 

Para saber mais sobre o Instituto Ayrton Senna e a proposta de promoção da educação integral

www.institutoayrtonsenna.org.br

 

Conheça o eduLab21, proposta que alia ciências e educação numa rede multidisciplinar

bit.ly/edulabinstituto

 

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