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"Não somos mais nós e eles. Somos nós"
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"Não somos mais nós e eles. Somos nós"

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São Paulo 20.03.2019..CEDAC - Comunidade Educativa..Seminário Internacional Arte, palavra e leitura .Abertura..Mesa - - O lugar da comunidade nos espaços de mediação..Silvia Castrillon .Felipe Munita .Bel Santos .Mediação: André Dias -..Photos:Fernando Cavalcanti (Foto: Fernando Cavalcanti)
Foto: Fernando Cavalcanti São Paulo 20.03.2019..CEDAC - Comunidade Educativa..Seminário Internacional Arte, palavra e leitura .Abertura..Mesa - - O lugar da comunidade nos espaços de mediação..Silvia Castrillon .Felipe Munita .Bel Santos .Mediação: André Dias -..Photos:Fernando Cavalcanti

Nas ancestrais línguas bantu do grupo ngúni, faladas pelos povos da África subsaariana, existe uma expressão que nenhuma palavra consegue dar conta sozinha: Ubuntu. Talvez porque ela não seja mesmo solitária, nasceu feita de muitos e afeita ao coletivo. Alguns dos incontáveis significados possíveis para Ubuntu são "humanidade para os outros" ou o singelo - e poderoso - "sou o que sou pelo que nós somos". Ao longo dos seus 51 anos de trajetória, a educadora social e mestranda do Programa de Pós-graduação em Lazer e Turismo (PPTur/EACH/USP) Bel Santos Mayer aprendeu a conjugar Ubuntu como verbo. Mais que um adjetivo, "junto" é uma ação.

Bel Santos Mayer nasceu em Santo André, região do ABC paulista, e cresceu nas periferias do Parque Santa Madalena. Filha mais velha de um casal baiano que foi tentar a sorte no "sul, grande cidade", a educadora foi a primeira de sua família a ingressar na universidade. Bel percorreu o mundo, descobriu outras realidades possíveis nos livros e crenças de Paulo Freire, mas nunca esqueceu de voltar e semear o solo que a recebeu. Coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário, Bel partilhou com O POVO o generoso trabalho que constrói em Parelheiros, distrito localizado na zona sul do município de São Paulo.

O POVO - Você foi a primeira de sua família a ingressar na universidade - um feito ainda marcante na realidade tão desigual das periferias brasileiras. Como foi o seu trajeto até entrar na faculdade de
Ciências Matemáticas?

Bel Santos Mayer - Eu fui a primeira filha que conseguiu estudar e finalizar o Ensino Médio na minha família. Aos 14 anos, comecei a trabalhar em casa como manicure e também auxiliava duas professoras cegas, o que me deu a possibilidade de continuar estudando. Eu venho de um bairro com muita violência e vulnerabilidades: ainda jovem, comecei a perceber que os meninos que morrem têm nome, endereço. Antes disso, todo mundo coloca um estereótipo de "mais um que morreu". Depois são seus colegas de escola, são os irmãos dos seus colegas de escola, e isso foi mexendo muito comigo. A minha primeira habilitação, então, começa nesse campo de crianças e adolescentes. Quando eu quis fazer magistério, meu pai ficou chocado - a educação já começava a perder a qualidade. Nós, trabalhadores, lutamos muito para ter acesso à educação pública e quando ela chegou, já estava abandonada. Ingressei no curso de Ciências Matemáticas, mas minha única experiência na área foi na coordenação do Núcleo de Ação Educativa 9, entre 1991 e 1993, quando o educador Paulo Freire foi Secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1993). Eu tive esse privilégio de conviver com Paulo Freire! Depois disso, nada mais! (risos). Eu me converti à literatura.

OP - Sua vivência como moradora do Parque Santa Madalena, no distrito de Sapopemba, influenciou seu trabalho com crianças e adolescentes. Posteriormente, inclusive, sua atuação foi reconhecida com uma bolsa de estudos na Itália. Esse processo reverberou como?

Bel - No bairro que morei durante a juventude, a gente buscava fortalecer as visitas das mães aos seus filhos na antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor(Febem), atual Fundação CASA. As visitas são humilhantes, muitas mães são ligadas à religiosidade e têm um outro jeito de olhar o corpo. Imagina o que é passar por uma inspeção para mostrar não ter nada escondido na vagina. A coisa mais normal, então, era não visitar os filhos e essa perda de vínculo é muito cruel para os meninos. Com o nascimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), o nosso trabalho foi disseminar o ECA. A gente quer esse Estatuto em que os nossos filhos também são tratados como crianças e não como menores. Ninguém vale menos! A gente não quer ser caso de justiça, a gente quer que a comunidade toda se responsabilize por essas crianças e adolescentes. Assim, fizemos parte da primeira leva dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente e criamos o Cedeca Sapopemba. Nesse contexto, eu fui convidada para estudar na Itália e fiz uma especialização em Pedagogia Social - foi o tempo em que mais li Paulo Freire, ele já era mais valorizado fora do que aqui no Brasil. A sensação foi de olhar o Brasil à distância, era como olhar o labirinto de cima. Na minha volta, trouxe para o Cedeca essa importância de pesquisar e ser um ativista que estuda, então apresentei uma proposta de formação pedagógica para toda a equipe. Em 1997, conheci uma grande liderança do movimento negro no País, Cida Bento, que me convidou para entrar no Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Fiquei na ONG por 10 anos e lá criei o Prêmio Educar para a Igualdade Racial, que pensa a questão da raça dentro do currículo escolar.

OP - Hoje você é coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac), referência na educação de jovens e adultos. Quais direitos a organização promove? Onde se concentra a atuação?

Bel - O CEERT se localizava no mesmo prédio que o Ibeac, então ingressei no instituto a convite da Vera Lion para substituir um formador que ia trabalhar em Moçambique. A gente nunca mais desgrudou! (risos). Estou no Ibeac há 22 anos. Nessa primeira oficina que acompanhei em Belém, formávamos agentes de defesa dos direitos humanos. Um dia, um dos participantes disse que São Paulo tem periferias com os mesmos desafios encontrados no Norte. Eu tinha sido professora e conhecia os jovens do movimento hip hop em São Paulo, então começamos um trabalho com o grupo Força Ativa - eles estavam lutando para ter uma biblioteca comunitária na Cidade Tiradentes, extremo leste. Topamos. Com ele, começamos a fazer também a formação em direitos humanos. O curioso é que eles diziam que direitos humanos eram só para as elites, que a ONU causava guerra nos outros países, mas hoje vários são sociólogos, pedagogos, que defendem principalmente o direito humano à literatura. A biblioteca já existe há oito anos e se chama Solano Trindade, uma referência para vários jovens que entraram na universidade pública. Em 2006, eu e a Vera decidimos concentrar tudo o que a gente sabia fazer - como os trabalhos com parteiras da floresta, criação de bibliotecas e formação de direitos humanos para agentes de saúde - em um único território. Ao longo de dois anos, fizemos pesquisas e levantamentos de dados. Escolhemos as regiões com o menor IDH e Parelheiros era o último. A área era considerada um dos piores lugares para se viver na cidade de São Paulo: a gente costuma falar que três de cinco copos de água que se bebem na Avenida Paulista são de Parelheiros e o pulmão da Cidade, que é a reserva de Mata Atlântica, está lá. Entretanto, quando você olhava os indicadores, só aparecia que os maiores índices de gravidez na adolescência estavam lá, o pior acesso ao transporte, as piores escolas, só falavam as coisas ruins. Chegando em Parelheiros, a gente encontrou uma gerente da Unidade Básica de Saúde que havia trabalhado conosco em processos de formação anteriores. Nos reunimos com as poucas lideranças comunitárias, apresentamos os dados e eles se chocaram: "Ninguém conta o que tem de bom aqui?". "Podemos ficar um tempo e criar uma outra narrativa, com vocês, sobre Parelheiros". Na reunião seguinte, apareceram 27 jovens. O nosso coração falou: nosso lugar é aqui.

OP - Qual é o trabalho desenvolvido
em Parelheiros na construção dessas outras narrativas?

Bel - Em 2008, quando chegamos em Parelheiros, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completava 60 anos. Tivemos a ideia de chamar 60 jovens de São Paulo para reescrever o documento, os 27 de Parelheiros e demais de outras regiões. Em Parelheiros, a gente vai se conhecendo e descobre que todo mundo vem de família de mães não escolarizadas ou não letradas. Surge uma proposta: vamos reescrever a Declaração até a mãe da gente entender? Pegamos os 30 artigos, escrevemos e reescrevemos, eles levavam para casa e só quando as mãe entendiam os artigos estavam aprovados. Eles tinham cerca de 14 anos, então o que chamou mais atenção foi o direito à educação. Uma vontade era abrir a biblioteca da escola, a gente já tinha aberto uma biblioteca comunitária e sabíamos fazer isso. "Legal! Vamos abrir biblioteca, mas e se a gente criasse uma biblioteca nossa, para todo mundo?". Conversamos com a gerente da UBS e abrimos uma sala dentro da unidades, o projeto se chamava "Pílulas de Leitura". Os meninos ficavam na recepção lendo e os médicos também entregavam livros junto com receituário. No meio do ano seguinte, um dentista chega e ocupa que lugar? Isso mesmo, a biblioteca. Começou a luta para encontrar outro lugar para fundar a biblioteca, mas Parelheiros é uma Área de Proteção Ambiental e tem poucos espaços para construção. Alguém lembrou, então, que a casa do coveiro do cemitério estava desocupada. "Por que a biblioteca não vai para lá?". Eu lembro que uma das meninas dizia: "Cemitério? Mas nem morta" (risos). Mortos vamos todos. Começaram as negociações do comodato e recuperamos a casa a partir dos princípios da permacultura. Existia uma narrativa que a gente tinha perdido espaço para a UBS, aí um amigo grafiteiro nos perguntou: "Estar aqui, para vocês, é motivo de orgulho ou de vergonha?". Isso foi marcador para nós. A gente decidiu continuar falando de vida em um lugar que é sobre morte, então a gente entrega poesia na hora dos enterros. Em 2011, os jovens criam o Sarau do Terror para comemorar o Dia dos Mortos em vez do Halloween. Já estamos na sétima edição do evento, que tem uma carga literária forte. Os contadores de história interpretam clássicos da literatura entre os túmulos, apresentam os "contos de enganar a morte" e a única atividade que coordeno lá são as rodas de leitura "Morte e…". Já falamos sobre morte e medo, morte e genocídio da juventude negra, morte nas religiões. A biblioteca tem feito isso, ela tem um momento de trazer as vozes da comunidade.

OP - Você também está à frente de um projeto para mães chamado "No meio do caminho tinha uma casa". Como funciona?

Bel - A gente trabalha muito com o conceito da Michèle Petit sobre a biblioteca como centro de convergência das questões da comunidade e da irradiação das mudanças. Sendo um centro de convergência das questões da comunidade, vários projetos surgiram da biblioteca. Temos um núcleo de mulheres que se chama Sementeiras de Direitos, as Mães Mobilizadoras, uma cozinha de alimentação saudável, um núcleo de turismo de base comunitária, um núcleo de brincadeiras e lazer que adota ruas... As Mães Mobilizadoras começaram a levar literatura para os momentos de pré-natal e também iniciaram a construção de cadernos de percursos, que reúnem fotografias e imagens de narrativas para esse bebê esperado. Tudo em Parelheiros. As Mães Mobilizadoras de Parelheiros disseminaram a ideia de que aldeia cuida das crianças, que a aldeia é responsável pela educação e todo mundo precisa saber onde as crianças estão. Elas desenvolveram duas bandeiras: uma tem uma mulher grávida e a outra, por sua vez, uma mulher com bebê. Essas bandeiras ficam nas portas das casas, então eu sei que ali tem um bebê e preciso ficar atento para não fazer barulho até tarde na rua, por exemplo. A gente começou a perceber, nessas atividades com mães, que a maternidade mais próxima de Parelheiros fica em Interlagos e são dois ônibus para chegar lá, podendo levar até duas horas. Uma das mães em trabalho de parto chegou até lá, mas precisou voltar pra casa e esperar a dilatação - não resistiu e veio a óbito. Então alugamos uma casa que se chama "No meio do caminho tinha uma casa" e fica exatamente ao lado da maternidade para abrigar mães antes do parto. Criamos também a Maternidade Literária e formamos voluntárias e equipes do hospital acerca da literatura. Agora, em cada andar desse hospital tem uma algibeira com livros e, quando os bebês nascem, as famílias já recebem o livro Quero Colo, da Stela Barbieri. Nosso sonho é ter uma maternidade e uma sala de parto em Parelheiros, mas a "No meio do caminho tinha uma casa" nos ensinou que a gente não chega de uma vez, a gente tem que ir construindo intenções intermediárias até chegar no lugar que a gente quer.

OP - O acolhimento é constante em suas falas sobre literatura. No que consiste a ideia da "pedagogia do cafuné"? Como democratizar o acesso à leitura a partir do coletivo?

Bel - A expressão "pedagogia do cafuné" foi criada pelo Tião Rocha (antropólogo idealizador do projeto Educação debaixo do pé de manga). Esses dias, um dos moradores de Parelheiros me mandou um lambe-lambe que ele encontrou na Avenida Paulista falando sobre o cafuné como os dedos que percorrem a sua nuca e te dão certeza de que você não vai desmoronar. Você sabe que pode cair, mas têm aqueles dedos entrando nos seus cabelos como que dizendo: "Você não está sozinho". A "pedagogia do cafuné", para nós, é exatamente não ser só um rosário de regras para dizer ao outro o que ele tem que fazer. É colocar os dedos entre os cabelos, é aprender juntos, é a dizer ao outro: "Eu estou aqui junto com você, eu estou aqui falando com você, eu estou aqui te escutando e te sustentando". Ninguém está fazendo favor, estamos no mundo para construir as mudanças juntos. Às vezes, as políticas públicas se equivocam por ter a mentalidade do favor. O cafuné outra lógica. Quando você está dando um cafuné, o que você está recebendo em ver a satisfação da outra pessoa? Você está recebendo isso, essa satisfação do coletivo. Em Parelheiros, a gente tem estudado muito juntos. A gente leu o texto do Antônio Cândido sobre direito humano à literatura; a gente leu Silvia Castrillon falando que a literatura pode ser um jeito de mudar o mundo... Voltamos ao questionamento: nós estamos conseguindo escrever a Declaração dos Direitos Humanos até a mãe da gente entender? A gente estuda as autoras negras, mas a gente fez também a exposição Pretas em Retratos para colocar as fotos das mães e das tias da tapioca dentro da biblioteca ao lado da Chimamanda Ngozi Adichie, da Cidinha da Silva, da Ana Maria Gonçalves... Elas escrevem o que a gente vive e o que a gente tem direito de ler. A gente faz muita leitura compartilhada. O jeito de democratizar a leitura é colocar os livros e as palavras nas mãos e ser escriba das memórias e das histórias das comunidades. Registrar, colocar as histórias das pessoas no papel. Hoje eu vejo esses meninos na universidade e eles estão fazendo pequenas revoluções. Quando uma menina de Parelheiros sobe, ela carrega dez outras com ela.

OP - Você defende a literatura
como um direito humano.
Como efetivá-lo, pluralizá-lo?

Bel - Quando Antônio Cândido fala em direito humano à literatura, o direito humano à metáfora, ele fala sobre esse direito humano ao sonho. Para mim, falar da diversidade como direito humano pela literatura é falar sobre o direito da gente se ver naquilo que a gente lê. Eu preciso da literatura de Conceição Evaristo falando das lágrimas e das dores, eu preciso ouvir a Djamila Ribeiro abordar o lugar de fala, eu preciso ler o (Luiz Silva) Cuti falando de racismo; mas eu preciso também de Kiusam de Oliveira falando sobre o mundo no black power de Tayó, eu preciso também ter acesso ao Guimarães Rosa falando sobre a Terceira Margem, eu preciso ter direito a tudo. Quando a gente fala do direito humano à literatura, é sobre esse direito de perceber que tudo aquilo que está sendo produzido em palavras nos pertence. Autores homens, brancos e héteros escrevem sobre os homens brancos e héteros. Eu quero que eles escrevam, mas também quero ler gente que fala de mim. A gente tem trabalhado com essa ideia do direito humano à literatura também como direito humano à bibliodiversidade. Nós podemos ler, nos ver naquilo que a gente lê, mas também ter a literatura para sonhar. É importante pensar na literatura como aquilo que nos desloca e nos põe em outro lugar, que é o tema da minha pesquisa de mestrado. Hoje, estou estudando os 10 anos da biblioteca de Parelheiros dentro do turismo - eu estou olhando exatamente para as mobilidades, os deslocamentos. Os meninos fizeram uma hashtag #deparelheirosparaomundo e #domundoparaparelheiros. Eles saíram, viajaram, fizeram o deslocamento físico que eu vivi há mais de 20 anos e voltaram para entender melhor o seu lugar. O deslocamento literário se dá cada vez que esses meninos leem mais. Eles saíram do lugar da invisibilidade, Parelheiros saiu do lugar da invisibilidade, nós todos estamos visíveis. Em sua fala, José Miguel Wisnik afirma que a gente precisa da ficção para construir a realidade. O que é que o bebê faz? Primeiro, ele confunde o seu eu com a da mãe; depois ele precisa reconhecer a mãe para saber quem ele é. As narrativas fazem isso, elas precisam conhecer o outro para depois saber quem são. No Seminário Leitura e Escrita: Lugares de Fala e Visibilidade, falei para o Wisnik que seria um sonho ele ir em Parelheiros conversar com a gente. Ele respondeu: "Quando?". Isso é construir outros mundos possíveis. Não somos mais "nós e eles", somos nós. Somos uma comunidade leitora.

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