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A Justiça não pode definir o que é falso ou verdadeiro
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A Justiça não pode definir o que é falso ou verdadeiro

| Jornalismo | Coordenador do Projeto Comprova e presidente da Abraji, Daniel Bramatti critica o chefe do Executivo Jair Bolsonaro por compartilhar notícia falsa: "Quem exerce a Presidência tem um megafone"
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FR26 SÃO PAULO 02/02/2012 - BLOG - PORTAL - Fotos Daniel Bramatti, para o blog do Estadão. FOTO: FELIPE RAU/AE (Foto: FELIPE RAU/AE)
Foto: FELIPE RAU/AE FR26 SÃO PAULO 02/02/2012 - BLOG - PORTAL - Fotos Daniel Bramatti, para o blog do Estadão. FOTO: FELIPE RAU/AE

Presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Daniel Bramatti afirma que decisões como a do Supremo Tribunal Federal (STF), que abriu inquérito para investigar notícias falsas, podem se voltar contra o jornalismo profissional. Editor do "Estadão" Dados e coordenador do Projeto Comprova, um consórcio de 24 veículos de imprensa (entre eles O POVO) que checou informações durante a campanha eleitoral de 2018, Bramatti acredita que não cabe aos políticos ou a juízes determinar o que é falso ou verdadeiro. Essa tarefa, ele defende, é da sociedade. Confira a seguir entrevista feita na última sexta-feira.

O POVO - Que riscos o senhor avalia que existam hoje à liberdade de imprensa no País?

Daniel Bramatti - Há diferentes graus de riscos com os quais os jornalistas trabalham. Tem jornalista cujo cotidiano é marcado pela ameaça de violência física. Há lugares no Brasil onde a presença do Estado é muito parca, muito fraca, e onde uma crítica é entendida como um ataque e isso pode levar a um revide. Há casos também em que o jornalismo - isso é muito comum no interior do País - está muito alinhado a um dos polos políticos que disputam o poder num determinado local. Nesse momento, quando o jornalismo se alinha a um polo, a um lado, acaba entrando no contexto da violência política. A gente vê, por exemplo, radialistas engajados em atacar um prefeito ou defender um prefeito. Então se há um grau de violência no município, isso faz dele um alvo. Mas tem uma nova onda de violência contra jornalistas, que é essa onda virtual na qual os profissionais são atacados pelas redes sociais. Essas agressões, muitas vezes, atingem não só a pessoa do jornalista, mas também familiares dele ou dela. A gente tem observado que isso não é uma coisa casual. Existe um objetivo quando se faz um ataque massivo a determinado jornalista. Esses ataques geralmente são motivados pelo fato de essa pessoa estar trabalhando com algum tema que incomoda alguém que tenha poder. O objetivo desses ataques é a intimidação, é tirar o jornalista do espaço público, das redes sociais, muitas vezes os jornalistas são alvos de tantos ataques e ameaças que eles acabam fechando suas contas e saindo do debate público. E também tem o objetivo de intimidar e fazer com que o jornalista pare de escrever ou falar sobre aquele assunto que está causando incômodo em certo setor. Isso é uma tendência que nos preocupa muito porque nós consideramos que imprensa livre só existe se o jornalista puder exercer seu trabalho sem nenhum medo, sem estar submetido a nenhum tipo de risco.

OP - Isso de fato tem intimidado a imprensa ou os jornais têm sabido enfrentar essa onda?

Bramatti - Acho que há casos e casos. Quando essa intimidação gera efeitos, e como são acusações pesadas, há consequências, sem dúvida. O profissional fica abatido com essa onda, que chega mesmo a ameaça de morte. Isso atinge colegas, atinge o veículo onde ele trabalha, expõe familiares. Tem um aspecto que é o efeito imediato no indivíduo e o efeito na sociedade, que é quem mais sai perdendo. Quando se cerceia esse trabalho, menos informação vem a público. Quanto menos informação circula, principalmente informação obtida com base em jornalismo profissional, equilibrado, isento, que procura trazer à luz informações de interesse público, procura ouvir todos os lados envolvidos e trabalhar com precisão e objetividade - quando esse tipo de trabalho é atacado e de alguma maneira cerceado, e perde visibilidade, todo mundo perde. A democracia só avança e se fortalece com a livre circulação de informações. E esse contexto de ataques vai no sentido contrário.

OP - Pela primeira vez vemos uma figura do alto escalão da República - o presidente, no caso - envolvido no compartilhamento de notícias falsas, como essa que acusava uma jornalista do "Estadão" de atacar o governo federal. Que consequências isso pode ter?

Bramatti - O fato de a notícia ser falsa é um agravante, mas o problema é anterior a isso. O problema é um presidente usar toda a sua estrutura de poder comunicacional num segmento muito importante da sociedade, que é o dos seus seguidores nas redes, para atacar a jornalista (Constança Rezende, de "O Estado de S. Paulo") e o pai dela (Chico Otávio, do "O Globo"). Foi um ataque duplo. Ou seja, o presidente usou sua estrutura para mirar em dois profissionais, fazendo com que todos os seus seguidores voltassem suas críticas e às vezes até o seu ódio a essas duas pessoas. Houve foto envolvida, divulgação da imagem. Isso, em si, já é muito grave. Um jornalista tem o dever de acompanhar a vida pública e de expor o que for irregular em relação a um político. Porque são os políticos que estão nessa posição, eles estão na vida pública e automaticamente submetidos ao escrutínio da imprensa. O contrário, um político fazer o que fizeram com uma jornalista, é uma deturpação completa. Não se deve aceitar isso, está fora do padrão. Não estou dizendo que jornalistas e veículos estão acima da crítica. Claro que podem ser criticados, de forma privada e pública. Veículos podem e até devem ser criticados, mas existe um patamar de civilidade que muitas vezes não é respeitado. É quando essa crítica se transforma num linchamento virtual.

OP - E sobre o compartilhamento de notícia falsa na conta do presidente?

Bramatti - Isso é muito grave. Quem exerce a presidência da República tem um megafone metafórico muito forte. No momento em que esse megafone é usado para difundir algo falso ou que não tem pé na realidade, nós podemos considerar que o presidente tem um certo desprezo por essa verdade, por essa realidade. Nós, da Abraji, consideramos isso muito sério e esperamos ainda uma retratação do presidente, quem sabe.

OP - Já havia se deparado com ameaças semelhantes? Acredita que esse tipo de postura é casual ou tende a se tornar sistemático?

Bramatti - Sobre a frequência, o ineditismo aí é o próprio presidente ter feito isso. Ele (Jair Bolsonaro, do PSL) fez alguns ataques quando era candidato, acusando alguns veículos de terem publicado informações falsas, sendo que até agora essa acusação não se mostrou sólida, e tem membros da família que constantemente atacam a imprensa. E vejo que atacam com objetivo político claro. Quanto ao risco de isso virar regra, acho que a sociedade precisa dar uma resposta a esse tipo de atitude. E vejo nas próprias redes sociais que muitas pessoas começam a sair em defesa do jornalismo, da prática do jornalismo profissional. Porque elas veem um valor nessa prática.

OP - Acha que o jornalismo profissional sai fortalecido desse embate?

Bramatti - No momento o jornalismo vive um período de fragilidade por esses ataques com objetivo não declarado de minar de quem de fato tem credibilidade conquistada. Mas também porque as crises econômicas costumam bater muito forte nos veículos de mídia. E, mesmo que não estivéssemos numa crise econômica, a crise do modelo de negócios dos veículos já vinha se mostrando. Falo do modelo baseado na publicidade, na venda em banca. As inovações tecnológicas geraram uma crise nesse modelo. Uma grande parcela dos investimentos em publicidade saiu dos veículos e foi para as empresas de tecnologia. Então, o jornalismo profissional vive uma crise em três frentes: a dos ataques de quem tem poder pelas redes sociais e por outros meios. O jornalismo está sob ataque de um grupo político, não só no Brasil, mas em outros países. Esse ataque não vem só de um dos lados do espectro ideológico. Veja o que aconteceu na Venezuela, onde um governo supostamente de esquerda destruiu ou tentou destruir o jornalismo independente. Nós temos um segundo aspecto da crise, que é econômico e conjuntural. E tem a crise estrutural causada pela migração dos investimentos publicitários para outros setores. É a crise do modelo. E, num momento em que o jornalismo é mais necessário, a gente vê que muitas redações não estão conseguindo manter os seus quadros e que estão sendo obrigadas a reduzir a sua força de trabalho. Isso obviamente enfraquece a imprensa como um todo. Por outro lado, um aspecto que nos dá um certo otimismo é que vemos iniciativas novas de jornalismo. Jornalistas passam a empreender, criar seus próprios veículos. Pode ser que o ecossistema da mídia fique mais plural e mais forte a longo prazo. É isso que esperamos.

OP - Como avalia essa decisão do Supremo de abrir inquérito para investigar fake news?

Bramatti - Vejo com preocupação quando se procura combater a disseminação de conteúdo falso pela via legal e pela via do Judiciário. Porque é um problema que tem vários aspectos, e deve ser atacado na educação midiática e na ênfase da circulação dos bons conteúdos em detrimento dos maus conteúdos. É muito melhor para a sociedade se os próprios veículos responderem a isso, mostrando o que circula de maneira falsa e tem intenção de enganar, em contraposição ao jornalismo que se faz de maneira séria e que procura expor a realidade e não distorcer a realidade. Quando se tenta resolver esse problema com leis ou ações na Justiça, nós estamos dando aos políticos e aos juízes o poder de definir o que pode ser considerado falso ou verdadeiro. E isso é muito perigoso. Cada vez que se faz isso, existe o risco intrínseco de a liberdade de imprensa sofrer cerceamento. O próprio jornalismo que se faz com qualidade, o jornalismo que é o contrário da fake news, pode ser afetado. Hoje, procuramos nem usar mais esse termo porque ele foi sequestrado pelos políticos, que consideram fake news tudo aquilo que os incomoda. Quando algo incomoda o político, ele já fala que é fake news. E não é assim. Geralmente ele está atacando não as fake news, mas o jornalismo crítico. Por isso, vejo com preocupação essa iniciativa do Supremo. Ela nos soa estranha porque procura investigar o fenômeno quando afeta o próprio tribunal ou os próprios ministros. Se a ideia fosse considerar que isso é um crime e um problema para a sociedade, isso deveria ser investigado de uma forma geral, e não apenas quando afeta o STF e o Judiciário.

OP - Um inquérito como esse do Supremo pode se voltar contra o próprio jornalismo?

Bramatti - Pode, sim. Temos casos em outros países em que aconteceu exatamente isso. Malásia e Hungria, por exemplo. Começaram uma discussão sob a alegação de que temos de combater as fake news e acabaram usando das leis, novas ou já existentes, para punir ou evitar o trabalho da imprensa real.

OP - O senhor defende que os próprios jornais se encarreguem de combater as notícias falsas, mas como os veículos podem fazer frente a isso? E qual o termo que a Abraji tem utilizado para se referir a fake news?

Bramatti - Eu, pessoalmente, tenho preferido usar o termo "conteúdo enganoso". Acho que é mais preciso e mais revelador da intenção que tem por trás da disseminação dessas informações. Na grande maioria dos casos, quando a gente se depara com isso que comumente chamamos de fake news, existe uma intenção por trás. Não é que alguém acha que uma coisa é verdade e sai espalhando. Quem cria esse conteúdo tem esse objetivo, que é enganar quem consome esse tipo de informação para que essa pessoa tome uma decisão de vida com base numa realidade deturpada. E, quando um cidadão ou cidadã é levado a tomar uma decisão - do voto, por exemplo - com base nessa realidade deturpada, como fica a democracia? É um ataque direto à democracia.

OP - O senhor coordenou os trabalhos do Projeto Comprova, de combate às notícias falsas. Qual o saldo disso? Foi positivo?

Bramatti - O Projeto Comprova foi uma iniciativa que reuniu entidades da sociedade civil. No caso do Brasil, a Abraji se juntou ao First-Draft, uma organização não governamental que combate a desinformação no mundo. Tivemos financiamento de alguns parceiros no Brasil, como Google e Facebook. Essa iniciativa contou com a participação direta de 24 veículos de mídia no Brasil e trabalharam num projeto colaborativo para monitorar e desmentir os boatos que circularam no período eleitoral. O Comprova publicou 146 análises de boatos que circularam. A imensa maioria era de conteúdo enganoso. Usamos os canais de divulgação dos próprios veículos envolvidos para fazer com que essas correções pudessem chegar aos leitores, aos consumidores de rádio e espectadores de TV. Como esses veículos têm uma presença forte na internet, pedimos que os conteúdos verificados do projeto tivessem um peso maior em relação ao conteúdo falso quando as pessoas fizessem uma busca. A gente sabe que nosso alcance é limitado, muitas vezes o que impulsiona a divulgação do conteúdo enganoso é o aspecto emocional de quem espalha. Ele concorda com aquilo, tem medo daquilo ou fica com raiva daquilo e aí passa adiante. Então, nós, do projeto, tentamos apelar para outro aspecto, que é o racional. Não espalha isso antes de pensar. É obvio que nossa velocidade é menor, a gente demora pra chegar nas pessoas, e é possível que a gente atinja uma parcela menor da sociedade. Mas nossa expectativa é de que, aos poucos, as pessoas, quando expostas ao conteúdo enganoso e ao conteúdo verificado, percebam que o conteúdo verificado não diz apenas o que é certo e o que é errado. Ele mostra como se chegou à conclusão de que aquele conteúdo é falso e, ao fazer isso, a gente está dando uma pequena contribuição educativa. O cidadão percebe que tem uma maneira de detectar que tal é falso. Na próxima, talvez ele fique um pouco mais desconfiado e tenha cuidado antes de repassar para terceiros. Quem repassa sem checar pode não ter intenção, mas está contribuindo para que o ambiente informativo fique pior. É quase como fumar em público. Está causando danos a terceiros por conta de um problema que deveria ser só seu. Se você quer acreditar num conteúdo que vem de uma fonte sem credibilidade, ou às vezes até sem fonte clara, um conteúdo anônimo, paciência. Mas, no momento em que você não apenas dá ares de veracidade, mas espalha para a sua comunidade de amigos, você os está levando a acreditar numa coisa que não necessariamente tem base na realidade. E isso pode acabar deturpando o entendimento geral sobre determinado fenômeno ou determinada pessoa num contexto.

OP - Para a imprensa, quais as ameaçadas da polarização política que o País vive hoje?

Bramatti - A polarização política é um terreno fértil para a disseminação de conteúdo enganoso. Quando as pessoas se unem em tribos, elas tendem a acreditar no conteúdo que reforça a sua visão de mundo, mesmo quando tem origem duvidosa. E elas tendem a usar esse conteúdo como reafirmação de identidade, então elas expõem que estão compartilhando e acreditando nesse tipo de conteúdo como uma mostra para o seu grupo de que ela está alinhada com os interesses e a visão de mundo desse mesmo grupo. Muitas vezes, essa coesão ideológica do grupo é colocada acima até da verdade. E uma democracia é forte quando o que é verdade circula, quando o que é verdade tem posição proeminente no debate público, e não o que está alinhado ao segmento A ou B do espectro ideológico. As pessoas ainda têm que aprender a deixar as suas paixões de lado quando elas estão expostas a um conteúdo informativo. Você não pode se encerrar na sua bolha informativa e consumir só aquilo que reforça a sua visão de mundo. Você tem que se expor a outros argumentos, procurar que tipo de argumento tem mais base na realidade, se tem fundamento científico, se tem algum estudo que lhe dá sustentação. Do contrário, a gente vai ter, de um lado, pessoas que não acreditam em aquecimento global ou em evolução, que é um fato real. E vai ter gente que não acredita na eficácia de vacinas ou, pior, que vacina causa doenças nas crianças. Isso é claramente irreal, mas existe uma politização desses temas. Nos Estados Unidos, por exemplo, a direita tende a acreditar menos no aquecimento global e a contestar a teoria da evolução. E ela é uma teoria não no sentido de que há dúvidas sobre elas, mas de que é um conceito científico consagrado, assim como a gravidade. Ninguém tem dúvidas de que a gravidade existe, e é também uma teoria. E, por outro lado, nos setores mais liberais da esquerda americana, que têm uma desconfiança ideológica em relação à indústria farmacêutica, eles começam a acreditar que existe uma conspiração dos laboratórios para que eles consumam determinados remédios e vacinem os seus filhos. Ou que existe uma conspiração para que os alimentos transgênicos substituam os alimentos naturais. E o que se tem é que, sim, a vacina é eficaz. Pode ter algum problema numa parcela ínfima da população, mas essa parcela vai estar sujeita a riscos muito maiores se ela não se vacinar. Tem toda uma literatura científica que vai mostrar que, até o momento, não existe risco para a saúde humana derivado dos alimentos transgênicos, mas grande parte da população acha que é o contrário, que o transgênico faz mal. Isso tudo está no contexto da ideologização dos fatos. É uma armadilha da qual os cidadãos precisam sair. A polarização alimenta a ideologização dos fatos e faz com que as pessoas escolham os fatos nos quais elas querem acreditar. E fatos são fatos, você não está autorizado a escolher. Você tem que aceitar os fatos como eles são.

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