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Um tango argentino
Opinião

Um tango argentino

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Rosemberg Cariry 
Cineasta e escritor (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Rosemberg Cariry Cineasta e escritor

Não houve meias palavras. O médico foi direto: você já está com o ouvido direito comprometido e perdeu 30% da audição do esquerdo. Nem triste fiquei, o que me veio logo na alma foi a memória de uma assombrosa história que testemunhei.

Conheci um velho sertanejo surdo que tinha um sonho impossível de se realizar: tocar sanfona pé de bode, a popular concertina de oito baixos. Mas, como aprender música se era surdo e no sertão se toca "de ouvido"? Aconteceu então uma coisa extraordinária, ele já estava com seus setenta anos de idade, quando, no fim do dia, chegando cansado do trabalho, foi dormir sem recomendar a alma a Deus. Ao adormecer, ele teve um sonho que lhe marcou o resto da vida. Nesse sonho, o diabo (possivelmente uma diaba - um súcubo, desconfio), apareceu-lhe envolto em névoas, entregou-lhe uma concertina de oito baixos e, pacientemente, ensinou-lhe a tocar um xote. O velho acordou assustado, suando frio, mas com alguma satisfação, porque guardara toda a música na memória e nas pontas dos dedos. Amanhecendo o dia, a sua primeira providência foi mandar buscar a sanfona de oito baixos de um compadre, a duas léguas de distância. À noite, reuniu a família e tocou o xote, tão bem tocado, tão belo e contagiante na sua alegria clara, que as pessoas se levantaram e começaram a dançar e a rodopiar pela sala, mesmo aquelas que na vida jamais tinham dançado. O segredo, inicialmente guardado entre familiares, espalhou-se, e o velho sertanejo passou a ser convidado para festas de casamentos e mesmo para as festas dos santos, para tocar a única música que sabia: o "Xote do Diabo". Uma música irresistível até mesmo para os padres e as beatas. Conta-se mesmo o causo de um frade, das santas Missões, que, ao ouvir o velho tocando o "Xote do Diabo", rodopiou no salão e levantou a sua batina como se fosse uma saia. Cruz e credo!

Assim, já não me importo de ficar surdo, quem sabe um dia eu tenha um sonho extraordinário e me acorde tocando um tango argentino. Sim, diante da tragédia em que mergulhou esse País, só mesmo tocando um tango argentino. n

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