Nos anos 1980 participamos das comunidades eclesiais de base do Lagamar. Fomos conhecer a vida da favela. Passamos um ano ouvindo-os. Até surgir a primeira reunião.
A motivação deste trabalho era essencialmente religiosa. A opção preferencial pelos pobres nos empurrava para trabalhar com eles e o fortalecimento da autonomia popular era o nosso parâmetro pedagógico.
Fragmentos dessa experiência me retornam, neste momento, em que está difícil traduzir a paz como fruto da justiça tamanha a desconstrução por que passa o nosso combalido Estado Democrático de Direito, formalizado na atual Constituição.
Lembro do seu Pedro comprador de pães velhos. Ele os revendia para garantir seu sustento. O comovente era o fato de que ele muitas vezes doava muitos dos seus poucos pães.
E as mulheres do Lagamar?! Naquele período havia uma proposta de transformar a favela em um bairro comercial: projeto com começo, meio e fim. E este passava pela remoção de muitas famílias.
Com o anúncio da transferência das famílias para periferias mais distantes criou-se um clima de apreensão e insegurança. Foi nesta circunstância que as mulheres decidiram resistir. A Ednar e a Cuncun chamaram amigas e decidiram visitar casa por casa.
A reação dos homens, entretidos com a cachaça e o dominó, era de desprezo e de ridicularizar as mulheres: "Não têm o que fazer", "Vão criar juízo...".
O movimento popular e comunitário foi se formando no ritmo que lhes era próprio, crescendo em força, organização e mística. Resistiu, mobilizou, e foi vitorioso.
Realidade de 2019: muitos filhos de lideranças populares foram tragados pelo tráfico e pelas facções. O imediatismo do consumo e nosso afastamento coletivo facilitou o descaminho.
Como construir sobre o nosso dilacerado tecido social uma nova experiência de caminhos solidários de lutas generosas com as periferias geográficas e existenciais de hoje?
Talvez a experiência do velho Lagamar e tantas outras semelhantes nos tenham algo a dizer e a nos estimular. Novamente e sempre. n