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O eclipse da miudeza
Opinião

O eclipse da miudeza

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O mundo está mudando muito rápido, alguns acreditam que isso se deve ao fato de vivermos em ambiente predominantemente técnico, separado agora, cada vez mais, do mundo natural. Não importa a razão, o fato é que as coisas mudam em diversos setores da vida. Prova disso é o desaparecimento de notícias detalhadas sobre crimes nos jornais. Curioso vivermos numa época tão violenta, e tão pouco casos policiais relatados nos jornais.

Se alguém desejar encontrar material com notícias sobre crimes, ficaria muito decepcionado com as publicações locais. Em nenhuma delas há relato sobre crimes com alguns detalhes curiosos: descrição da cena, tipo do criminoso, maneira como tudo aconteceu e suas motivações. É uma perda muito grande. No passado, já se disse que a ficção encontraria nas páginas da imprensa seu vasto arquivo diário para compor o quadro da vida da época. Dos jornais que leio com frequência, somente na "Folha de São Paulo" encontro descrições com alguma serventia. Imaginemos o quanto Louis-Ferdinand Céline retirou dos jornais a fabulosa e cruel peripécia da sordidez humana para compor seu monumental "Viagem ao fim da noite" sem as pequenas notícias dos jornais.

Outro dia, deparei-me com uma pequena matéria sobre um caso ocorrido na periferia de Fortaleza. Um carroceiro fora preso altas horas da madrugada transportando dois ou três cadáveres. Relatava sobre as condições da descoberta e o estado dos corpos, mas era tudo que se tinha. Li aquilo e fiquei esperando que no dia seguinte mais coisas fosse dito sobre o acontecimento, para minha surpresa a estória tinha desaparecido, nada mais o leitor ficaria sabendo sobre o destino dos corpos e o que a polícia apurou. Não preciso dizer que fiquei bastante decepcionado. Qualquer descrição de cenas envolvendo ações humanas não vale nada se não for recheada com suas motivações. Só elas permitem penetrar na mente dos feitores e encontrar os sentidos. Das pequenas narrativas de crimes, o importante e ausente, são as motivações. Sei que pouco se liga para as motivações, importa apenas os fatos. Mas não é verdade que motivações são irrelevantes, basta ver o rio de livros de autoajuda para confirmar o contrário.

Outro pequeno fato. Uma mãe fora denunciada às autoridades por maus-tratos ao filho. Ela recebia leite mensalmente num posto de saúde da prefeitura. Ao que tudo indica, quando se aproximava o dia da ida ao posto, para pesar e consultar a criança, a mãe teve a ideia de dar laxante para o filho na esperança que ele permanecesse com o mesmo peso. Ora, de uma pequena estória terrível dessa, um curioso liberal certamente refletiria sobre as consequências não previsíveis e intencionais das políticas públicas. A pobre mãe submetia nos dias anteriores ao retorno do filho ao posto para avaliação médica, sessões diárias de purgante, esperando que ele apresentasse o mesmo quadro de desnutrição e a quantidade de leite permanecesse a mesma.

Hoje, o jornalista liga para a delegacia e anota praticamente tudo que foi dito oficialmente e publica, deixando de lado, o mais importante. Que pena! n

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