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A rebelião da leveza
Opinião

A rebelião da leveza

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Marília Lovatel (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Marília Lovatel

Falta ar quando a lama invade a cidade. Quando a bomba explode na cidade. Quando o ar cheira à impunidade em todas as cidades. Quando se quer erguer o muro para que não atravessem a fronteira. Quando o crime não tem fronteira, atravessa os muros da prisão. Quando os muros dividem sem oferecer proteção. Quando foi exatamente que as nuvens escureceram o céu? Quando se ouviu o primeiro estrondo? Quando nos tornamos viajantes na tempestade, sem enxergar nada além do para-brisa? É preciso descer do carro. Parar antes de atropelar a flor nascida no asfalto. Celebrar o verde violentando o muro. Ser a resistência daquilo que não tem vez, nem lugar, nem importância nos duros tempos que são os nossos. Eram duros em 1992, quando Rachel de Queiroz me escreveu essa frase em uma pequena carta - guardo-a como um tesouro. Eram duros antes disso. Antes mesmo de Rachel. E como reagir à dureza? "Se existe um fato incontestável na vida de cada dia, é que a doçura consegue, em toda parte, muito mais que a violência, e que, de entre todas as forças em ação neste mundo, ela é a mais forte", escreveu Joaquim Nabuco. Talvez a resistência seja justamente esta: não deixar de crer na doçura, mesmo quando as notícias são terríveis e tudo nos desanima. Talvez a resistência esteja em agir como Elia Kazan, o grande cineasta que revelou ao mundo o talento de James Dean, ícone da rebeldia. Ao dirigir seus atores, deles se aproximava, num quase abraço de quem caminha repousando o corpo nos ombros do outro, e cochichava o que queria, sugeria em segredo como poderiam fazer melhor. Confiamos nas pessoas que nos corrigem com sutileza. São seres capazes de ensinar pela alegria da descoberta, não pelo constrangimento na detecção que expõe o erro com dureza. É necessário recusar a dureza. Recusar outro tijolo na parede, outra pedra no muro. Recusar o muro. Não há represa para a violência. A oposição aos nossos duros tempos nasce no tempo dedicado à leveza. Uma das seis propostas para o próximo milênio, segundo Ítalo Calvino, que cita as "Metamorfoses", de Ovídio, para que melhor se compreenda a relação entre Perseu e Medusa, a leveza consiste em recusar a visão direta, não para negar a realidade, mas para escapar de endurecer, de ser por ela petrificado. E, por esse ângulo que permite ver no reflexo do escudo de bronze, cortar fora a cabeça do monstro. Quero vencer o monstro. Quero a rebelião da leveza, porque falta o ar e precisamos urgentemente respirar. Quero me rebelar contra a tempestade. Quero os raios do Sol atravessando o para-brisa. Quero os cabelos ao vento à janela do carro. Quero andar abraçada a quem me ensina. E, se perder o ar, quero que seja com um beijo muito apaixonado, daqueles de cinema. n

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