Por coincidência, assisti há poucos dias o último filme do cineasta mexicano Alfonso Cuarón, o aclamado Roma, disponível na Netflix, que vem arrebatando os mais importantes prêmios da categoria ao redor do mundo. A história de Cleo, empregada doméstica na Cidade do México da década de 1970, é contada com estética que a aproxima do neorrealismo italiano de diretores como Rossellini, De Sica e Fellini. Sua ficção está firmemente respaldada pelo quadro político e social de uma época.
Cleo é responsável pelas tarefas domésticas de uma grande casa, cujos donos integram a elite intelectual da capital mexicana. Além do casal, quatro crianças e a avó materna vivem ali e compartilham uma rotina que, em medidas variáveis, depende de Cleo para funcionar sem solavancos. Enquanto enfrenta seus próprios demônios, a empregada convive com a instabilidade emocional da patroa, que oscila entre as figuras de guardiã e algoz da subordinada. Cleo cumpre seus rituais de arrumação e ordem com a resignação de quem conhece seu lugar.
No mesmo dia em que vi o filme de Cuarón, fui a uma consulta médica no Office Treze de Maio, no bairro de Fátima. Quando o elevador chegou ao térreo, segurei as portas automáticas para que um motoboy com uma entrega de almoço também entrasse. O segurança interrompeu nossa conversa e disse que o entregador teria que esperar o elevador de serviço, que estava no 22º andar. Insisti, busquei reforço nas outras pessoas, mas a postura do segurança foi irredutível.
As explosões que agridem nosso ideal de cidade tranquila são as mesmas que golpeiam a rotina de pessoas cujo único ideal é tomar o coletivo na hora certa e receber o salário no fim do mês. Para nós, a pancada simbólica. Para eles, a porrada real. Na cidade em chamas, somos meros espectadores deslumbrados pelas faíscas.
Jáder Santana
jader.santana@opovo.com.br
Jornalista do O POVO