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Um Brasil delirante
Opinião

Um Brasil delirante

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Quis o destino que, no mesmo dia em que Cuba informou que deixaria de colaborar com o Brasil enviando médicos para trabalhar nos rincões aonde boa parte dos profissionais formados aqui não gostariam de ir, o presidente eleito Jair Bolsonaro anunciasse o novo nome para o Ministério das Relações Exteriores (MRE).

 

Classificado pelo deputado federal do PSL como "brilhante intelectual", Ernesto Araújo é um embaixador de carreira. Tem 29 anos de serviços prestados ao Itamaraty, nenhum deles à frente de uma missão diplomática.

 

Entre ocupantes da pasta, é coisa rara: normalmente os designados ao posto desempenharam a função de chefes de embaixadas. A decisão de Bolsonaro causa espécie - não mais do que a indicação de Onyx Lorenzoni para a Casa Civil, fortíssimo candidato a cair da cadeira antes de ocupá-la de fato.

 

Araújo, que mantém um blog chamado "Metapolítica 17", revelou-se um entusiasmado defensor do capitão da reserva durante a campanha presidencial deste ano, no curso da qual fez publicar uma série de postagens elogiosas ao então candidato. Numa delas, chama o PT de "Partido Terrorista".

 

Noutra, o embaixador, que também se apresenta como escritor, desfia a teoria segundo a qual o "globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural", um sistema que é "essencialmente anti-humano e anti-cristão".

 

A tese é esdrúxula. Depende de certo pendor ao delírio e nenhum apreço histórico. Duas pessoas parecem fiar-se nisso: além de Bolsonaro, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a quem o brasileiro vê como exemplo e Araújo, como paladino.

 

Ainda no blog, o futuro auxiliar do presidente eleito adverte que "a fé em Cristo significa, hoje, lutar contra o globalismo, cujo objetivo último é romper a conexão entre Deus e o homem, tornando o homem escravo e Deus irrelevante". E ressalta: "Quero ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista".

 

O caldo é perigoso. Diplomacia, religião e política podem resultar numa mistura indigesta para as relações comerciais do Brasil com um mundo que passa por turbulências sociais, principalmente depois da série de trapalhadas que Bolsonaro vem fazendo antes mesmo de assumir a Presidência da República.

 

Primeiro, comprando briga com a China. Em seguida, sugerindo que pode transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, contrariando o mundo árabe, segundo maior comprador de proteína animal do País.

 

E, finalmente, prometendo fechar a representação diplomática em Cuba sob pretexto de cortar laços com nações de ideologia de esquerda. Como justificativa, Bolsonaro assegura que a ilha caribenha não teria nada a oferecer ao Brasil.

 

Ao Ceará, pelo menos, o regime cubano tinha algo a compartilhar. Dos 1.229 profissionais que atuam no Estado no programa Mais Médicos, 448 são cubanos, espalhados por 118 municípios, parte dos quais só dispõe da mão de obra estrangeira. Com o encerramento do contrato, essas cidades voltarão a depender da própria sorte até que as vagas ociosas sejam repostas - se forem mesmo.

 

E então será curioso descobrir se os médicos brasileiros haverão de ter disponibilidade para trabalhar em Reriutaba, Monsenhor Tabosa e outras cidades que hoje dependem do Mais Médicos.

 

Pelo Twitter, Bolsonaro disse nessa quarta-feira que "a política externa brasileira deve ser parte do momento de regeneração que o Brasil vive hoje". A crer nos sinais emitidos até agora, no entanto, neles incluída a indicação de um ministro para quem a grande ameaça global hoje é a do comunismo, o risco de que haja retrocesso é imenso.

 

Henrique Araújo

henriquearaujo@opovo.com.br  

jornalista O POVO

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