Há pessoas que, para agradar, agridem-se, e há pessoas que agridem querendo agradar. Há pessoas que buscam estar sozinhas, mesmo se vendo em meio a muitos, e há pessoas que, mesmo sozinhas, não conseguem se enxergar. Na verdade, sozinho ninguém nunca está; mesmo quando alguém fala sozinho, por exemplo, um outro, imaginariamente ao menos, presente aí se encontra.

Quando tu dizes "eu", na verdade, esse eu é a junção de elementos que foram se formando em ti a partir de outros através dos tempos. O nome que tu trazes não foi escolhido por ti; o lugar que tu ocupas em tua família não foi escolhido por ti. O que pode existir, a partir de ti, é uma reação para querer ratificar ou retificar um dado de realidade que te é apresentado, desde o teu nascimento até então, de modo que, quando tu vens a querer, existem elementos que querem em ti, e, a partir de ti, as escolhas que fazes acontecem. Tu não ages, contudo, tão somente, a partir de ti. A decisão é tua, mas outros elementos, vindos de fora de ti, também estão presentes em ti no ato de decidir. A tua forma de querer, de proceder, contigo têm a ver, e a responsabilidade disto cabe a ti. Todavia, quando dizes "eu", estás dizendo também de outros que dizem a partir de ti. Quando tu dizes "eu sou paciente", uma coisa é esse que faz uso da palavra para dizer "eu sou paciente"; outra coisa é esse paciente que tu dizes ser. Há uma diferença entre o enunciado e a enunciação. O enunciado é o que tu queres comunicar; a enunciação é o que tu revelas, mesmo que disto não tenhas consciência no momento. Exemplo: por que, por vezes, tu te decides a realizar algo e não te percebes com suficiente força para levá-lo acabo? Há algo que está em ti e algo que passa por ti.

Vale conferir: sozinho, nunca haverás de estar. Mesmo que sozinho estejas, trazes um referencial a partir do qual tu te dispões a pensar, julgar, agir, proceder e querer. Isso existe e está em ti. Existe uma história, algo que trazes inscrito em alguma instância de tua pessoalidade, que se expressa em teu querer e que te leva a desejar o que, intimamente, não queres ou a querer o que, no teu mais íntimo, não desejas. Dividido, está aí a matriz de teus conflitos e, acerca disso, convém falar; do contrário viverás em infindáveis repetições, sem saber, ao certo, aonde de te levará certas decisões e impulsos. Existe "isso" que está em ti, sobre o qual não tens um controle e que pervade todas as áreas de tua vida. Se não vieres disso a cuidar, via fala, verás em que "isso" vai resultar.

Padre Airton Freire 

fundacaoterra.org.br

Psicanalista e criador da Fundação Terra