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Política de saúde: não confundir aborto com homicídio
Opinião

Política de saúde: não confundir aborto com homicídio

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Tipo Notícia

As campanhas eleitorais têm o mérito de aproximar candidatos dos problemas e ensejos da população. O aborto e a descriminalização de sua prática têm sido uma demanda generalizada que não pode continuar a ser ignorada, já que o Supremo Tribunal Federal passou a discuti-la em audiências públicas. Se, por um lado, não surpreende o embate de argumentos contrários e favoráveis em aborto, por outro, choca a simploriedade das teses evocadas contra a descriminalização do aborto. Por simploriedade, me refiro à falta de embasamentos históricos, filosóficos e científicos das opiniões defendidas. Afinal, quais questões levantam o aborto? Não me parece suficiente apelar à "defesa da vida", ao "direito à vida a partir da concepção" ou ao mandamento bíblico "não matarás". O que está em discussão não é toda e qualquer vida, mas a vida de um ser humano, o que implica discutir o que é a vida, o que é um ser vivo e o que é um ser vivo humano. Com essas definições em mente, será então possível perguntar se o embrião é um ser humano desde sua concepção ou se, ao longo da gravidez, ele se torna humano e a partir de qual momento?

 

Parece necessário, em primeiro lugar, distinguir entre "estar vivo" e "ser um ser vivo", como sugere Francis Kaplan, cujo pensamento este artigo apresenta. Algo pode ser vivo como parte de um outro ser vivo, minhas pernas, meu olho por exemplo, sem ser um indivíduo, "um ser organizado vivendo de uma existência própria". Um ser vivo, dizia Jacques Monod, tem funções, isto é, atividades em função de algo, atividades finalizadas, é ser dotado de um projeto. O embrião não pode subsistir sem as funções da mãe. "Ninguém, aliás, duvida que, até a vigésima semana após a concepção, o embrião não é viável... como então ser um ser vivo e não ser viável?", escreve Kaplan. O embrião é, portanto, vivo como parte de um ser vivo, embora não seja ele mesmo um "ser vivo". Logo, o aborto não tira a vida de um ser vivo.

 

Não sendo um ser vivo, ele não é evidentemente um ser humano vivo. Como caracterizar a humanidade? O filósofo Emanuel Kant caracteriza a humanidade como o que não pode ser instrumentalizado; o humano é um fim em si mesmo. E o que distingue um ser que é um fim em si mesmo? A consciência. Por sua vez, a consciência depende para existir de uma atividade neuronal; hoje, a medicina considera clinicamente morta uma pessoa sem atividade cerebral. Logo, o critério a detectar um ser humano vivo é a atividade cerebral, o que no embrião não ocorre antes do fim do primeiro trimestre, momento em que pela primeira vez o aborto poderia ser considerado homicídio, atentado contra a vida de um ser humano. Antes, se não há sequer um ser humano, como haver homicídio?

 

Mas se o embrião não é um ser humano, diz-se, que ele o é em potencialidade. Mas como poderia o embrião ser uma pessoa em potência não sendo sequer um ser? Ele ainda não usufrui de autonomia. Gosto da observação de um dos pais da Igreja, Gregório de Nicéa (335-395): "Não se dará ao embrião o nome de homem, já que é imperfeito; é alguma coisa que tem a potência de chegar à existência humana se for desenvolvida, mas que, enquanto se encontra em situação de inacabamento, é algo diferente, mas não um homem".

 

Lembro que a Bíblia não condena o aborto (Êxodo XXI, 22-23) e que o aborto não é um problema de fé para as religiões cristãs, mas um problema científico e epistemológico.

 

André Haguette

haguetteandre@gmail.com

Sociólogo e professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC)

 

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