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A decisão de ocupar a cidade
Opinião

A decisão de ocupar a cidade

Edição Impressa
Tipo Notícia

Lucinthya Gomes

lucinthya@opovo.com.br

Jornalista do O POVO

 

Cresci na periferia, indo e vindo de ônibus, fazendo longos percursos a pé, porque nem sempre a parada ficava próxima de casa ou da escola, ou da universidade. Tenho muitas lembranças de quando saía com meus pais carregando as compras do supermercado por vários quarteirões. Até nasce um sorriso, quando me recordo do peso das sacolas, que me fazia apressar o passo e, de vez em quando, querer descansar as mãos deixando as compras por uns minutinhos na calçada.

 

Há muito de memória afetiva nas andanças pelo bairro. Como comprar bombom na bodega da Dona Almerinda, sempre querida, e nas histórias da Ana Cristina, que vivia apaixonada. Fiz também várias amizades dentro de ônibus. Conhecia o motorista do meu horário de ir à escola e morria de vergonha nas vezes em que, por distração, pedia a bênção para ele, em vez de apenas agradecer a viagem.

 

Mas a periferia em que cresci foi se esvaziando. A minha relação com a rua, com cada vez menos cadeiras na calçada, se modificou. Adulta, me vi fazendo escolhas na tentativa de me esquivar da violência. Depois que comecei a trabalhar, tive a chance de comprar meu próprio carro. Quando saí da casa dos meus pais, priorizei lugares com mais segurança e serviços.

 

A rotina passou a se resolver de carro. Contudo, me parece que a ilusão de maior proteção, muitas vezes, compromete a convivência com o outro e com a própria cidade. Por isso, nunca deixei de caminhar pela vizinhança, "pegar sereno" de noitinha, me encantar pelas poucas residências de muro baixo, pelos jardins aparentes. Há um sentimento de liberdade em estar na rua. Com certa frequência, volto do supermercado a pé, carregando uma caixa com minhas compras. Fico feliz ao ver a pracinha conservada e habitada (e penso que também deveria ser assim no bairro onde eu morava).

 

No último mês, resolvi voltar a fazer alguns percursos de ônibus. Com todas as dificuldades que persistem no transporte público, tenho percebido comodidades em deixar o carro na garagem. De vez em quando, um relato ou outro de assalto me faz ter o impulso de recuar. Contudo, sinto não ser justo comigo mesma me paralisar pelo medo. Ocupar a rua tem sido uma decisão. Como recompensa, vou multiplicando os acenos e cumprimentos com a cidade e seus moradores.

 

 

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