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Mais armarinhos, menos farmácias
Opinião

Mais armarinhos, menos farmácias

Edição Impressa
Tipo Notícia

Um quadradinho em tecido branco ordinário, agulha e linha misturadas a livros e cadernos. Acomodada num canto da sala de aula, olhos de colorir, a menina tecia pontos que, nem imaginava, seriam revistos mais de quatro décadas adiante.
 

A imagem é de um tempo quase apagado da memória, mas suficientemente forte para me levar a frequentar um curso de bordado no ano passado. Se na infância a atividade era preparação para os afazeres domésticos - nítido reforço ao que estaria destinado às mulheres -, agora, a ideia veio para frear a velocidade dos dias, buscar novo ritmo.
 

Trabalhos manuais, na verdade, vivem dias de redenção. Graças a estudos que demonstram proteção ao cérebro contra o envelhecimento, atividades como bordar ganham adeptos de idades variadas e de ambos os sexos. Ainda que as mulheres continuem sendo em maior número.
 

Para além da prevenção ao declínio cognitivo, algo que ainda não tenho como afirmar, tecer com agulhas, ponto a ponto, produz sensação de relaxamento, diminui o estresse e, sobretudo, abre espaço para aprendizados vários.
 

Nessa semana, conversei com quatro mulheres incríveis, cada uma exercendo atividade diferente, todas herdeiras de ancestralidades para as quais devemos nos voltar. Perpetua Martins, mestra na renda filé, cresceu vendo o pai trabalhar o couro, a mãe na almofada de bilro. Ethel Whitehurst, há mais de 40 anos, segue bordando o que a mãe ensinou. Piera Cysne faz da costura o seu projeto de vida. Vanda Almeida começou a bordar para superar a dor da perda. Hoje, em grupo, retrata a Cidade, seus lugares e afetos.
 

Há um novo bordado. Mas não se pode perder de vista a força feminina presente em cada peça. No mais desornado pano de prato, na toalhinha porta copos mais singela ou na mais que utilitária rede de dormir, ali há vivências que são construções. Artesãs que têm nas linhas o sustento de suas famílias, muitas vezes, vencem o medo da violência machista, superam prisões seculares. Para o sustento ou para deleite, para exercer a arte que extravasa, dar sentido à vida ou para o que nem se sabe, miúdos pedaços de pano, agulhas e linhas.

 

Maísa Vasconcelos
maisavasconcelos@gmail.com
Jornalista do O POVO

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