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Leitura de influencer
Opinião

Leitura de influencer

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Esta semana, milhares de pessoas ficaram conhecendo o livro A parte que falta, do ilustrador norte-americano Shel Silverstein. O livro ganhou a primeira edição nos Estados Unidos, em 1976. No Brasil, chegou em 2013 pela Cosac Naify, ganhou uma resenha e nas livrarias perfilou-se ao lado dos seus pares. Quando a Cosac Naify foi extinta, o selo infantil da Companhia da Letras ficou com o título e o reeditou. Mas ele só virou best-seller quando a youtuber que é também escritora, Jout Jout, divulgou o vídeo com a leitura do livro.


Não precisa ser escritor, editor, ilustrador. Só precisa ser leitor para tomar parte do mercado editorial. Aliás, a parte mais delicada, o alvo que todos querem alcançar. No Brasil, ser leitor é ser um consumidor privilegiado. 

 

Metade da população brasileira – incluindo crianças e adolescentes – consume muitos livros, mas quando se trata daqueles leitores jovens e adultos que leem pelo mero prazer, somos poucos. Mesmo assim, o mercado editorial brasileiro é potente, esse público leitor é leal e curioso, além de ter o mérito de sustentar as publicações que correm por fora dos best-sellers.
 

Houve uma época da minha vida que eu usava a restituição do imposto de renda para comprar livros. Meu marido achava isso uma doidice. Para ser franca, gastava qualquer dinheiro extra que aparecesse para comprá-los, porque queria formar uma biblioteca pessoal, então, precisava primar pelos títulos. Não poderia ter coisas que seguissem os modismos ou que fossem descartáveis. Comprar livro, para mim, sempre foi algo pensado e calculado.
 

Quanto mais leio sobre o mercado editorial, mais penso que muitas publicações atuais precisam de outras ferramentas que o norte-americano Frank Luther Mott, em seu pioneiro estudo sobre o best-seller iria achar estranho. Por exemplo, o papel dos influencers. O livro precisa aparecer na mão certa, no vídeo certo para fazer sucesso. O contrário também é verdade. Um influencer pode desancar uma obra. Basta que alguém com alguns zilhões de seguidores não goste. Recentemente o livro infantil, Pepa, foi considerado racista embora dissesse justamente o contrário.
 

Os influencers falam sobre tudo que é coisa, livro inclusive. Já vi inúmeros. Haja paciência, porque quanto mais influência eles têm, mais falam. Penso muito no critério das coisas, mas critério é uma palavra que em breve será retirada do dicionário online. E aí estará justificada toda e qualquer opinião dos youtubers, incluindo os que comentam os livros.
 

A roda vida das mídias precisa girar tão rápido que, às vezes, parece inalcançável, de um canal alimentando o outro para não perder espaço e mais uma vez repercutindo, reverberando e acumulando curtidas. Tudo isso não tem muita coisa a ver com o livro em si. A experiência da leitura é algo pessoal, íntimo. Impossível duas pessoas lerem da mesma forma o mesmo texto, o mesmo livro. Por isso, sei que o efeito manada pode ter resultado imediato de caixa, mas o percurso para a construção de um leitor tem
outros caminhos.
 

E só para fechar: A parte que falta vai continuar sendo ótimo exatamente como era antes de ser personagem da Jout Jout. Porque esse é justamente o segredo da boa literatura. Quando tudo passar e for datado e perder o sentido, ela se mantém pronta para ser lida como se a vida inteira estivesse ali nos esperando.

 

Regina Ribeiro
reginaribeiro@opovo.com.br
Jornalista
do O POVO
 

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