Pedalar é visceral na essência. Ser proteção e motor de si é estimulante, forte, necessário — para si, para a cidade. Pedalando a atenção consegue ser redobrada ao mesmo tempo em que a cabeça voa. No limiar dessa visceralidade, a bicicleta me transformou muito. E um dos aspectos dessa transformação é controverso, mas diz muito sobre ser mulher. Pedalando eu me transformei em uma pessoa que xinga e/ou faz gestos obscenos sem pudor. Uma pessoa que faz do constrangimento reação.
Essa foi a proteção que eu, mulher, descobri diante de buzinas, perseguições, gritos, assovios de homens. Se quando mais nova eu apenas fugia dos assediadores, pedalando eu me tornei agressiva diante deles. Finco o pé.
Reajo mesmo. Os riscos são óbvios. A vulnerabilidade se multiplica com essa postura. Mas, afinal, qual o tamanho das consequências quando somos fuga e silêncio?
Sei que não estou sozinha nessa postura. Uma amiga contou, dia desses, sobre o gesto obsceno que fez, parada na calçada em frente ao trabalho, na direção de um homem que buzinou para ela. Naquela semana, disse, era a segunda vez que acontecia algo do tipo.
Dias depois de ouvir essa história, houve a aprovação de lei, em Fortaleza, que prevê multa de R$ 2 mil para quem “ofender a honra, assediar, intimidar, constranger, consternar, hostilizar com palavras, gestos ou comportamentos, afetando a dignidade, liberdade de livre circulação integridade e honra de mulher”. Fiquei refletindo e concluí que é difícil aplicar essa lei. Eu não me vejo saindo correndo atrás de um assediador para conseguir informações sobre ele e, assim, denunciá-lo. Minha reação tem limites físicos. E acho preocupante a única punição ser a financeira. Não acredito que isso conseguirá mudar o contexto que leva aos assédios.
O assédio nasce na mentalidade de que o corpo da mulher é disponível, de que a nossa roupa “provoca” (estejamos de calça, short, saia, vestido…) e que uma mulher na rua está “pedindo” para ser assediada. Mas, não. Assédio é violência. Por isso, a cada xingamento que um assediador receber, só espero que ele reflita sobre respeito. Porque nós temos voz e sabemos reagir — se não denunciando com uso de uma lei, gritando, xingando, resistindo.
Mariana Lazari marianalazari@opovo.com.br Editora do O POVO