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"Capetinha" e os antecedentes
Opinião

"Capetinha" e os antecedentes

Edição Impressa
Tipo Notícia

O ápice da popularidade na minha escola no ensino fundamental era um menino que todo o colégio admirava (e também invejava um pouquinho). Com menos de dez anos, ele já tinha espaço fixo num programa de rádio de um locutor famoso à época. Vou chamá-lo aqui pelo nome de Daniel, mas, no programa, seu apelido era Capetinha – alcunha que ganhou por ser danado e fazer comentários engraçados ao vivo.  

Àquela altura, eu era o oposto de Capetinha. Tímido, eu falava pouco em público. Não sei ao certo o porquê, mas Daniel, do alto do seu sucesso, sempre quis ser meu amigo. Puxava papo, me incluía nas brincadeiras. Uma criança doce e divertida. Mas aí veio minha mudança de colégio, os caminhos foram outros e eu passei quase uma década sem ter notícias dele. Até que há dois anos, ele reapareceu na minha vida. Não como eu esperava. 

 

Ao encontrar no Centro um colega também daquele tempo, fiquei sabendo da morte do garoto que era minha referência de celebridade dos tempos de escola. Daniel foi assassinado. Fiquei sem entender, bateu um sentimento de revolta imediato. O tal colega, talvez me vendo atônito, tentou aplacar: “Mas ele era envolvido”. Falou como se aquele complemento fosse, de algum modo, trazer sensação de alívio.  

No último sábado, ao ver a lista dos mortos na Chacina do Benfica divulgada pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS), lembrei mais uma vez de Capetinha. Ao lado do nome completo das pessoas assassinadas, o órgão fez questão de destacar os antecedentes criminais. A informação é relevante? Talvez em outro contexto. Não nesse, quando a Cidade ainda vive o luto e que, como está claro, a chacina não se trata de um caso isolado. Nem é apenas bandido matando bandido (que é igualmente trágico).  

Divulgar uma nota como essa é quase como bradar: “Calma, “cidadãos de bem”, isso só aconteceu, porque eles também eram envolvidos”. A gente sabe, porém, que ninguém, independente de antecedentes criminais, está imune à violência urbana no contexto atual de Fortaleza. Nem a morte do meu amigo de infância, nem de nenhuma vítima, é menos trágica e dolorida por conta de passagem policial alguma.

 

Renato Abê renatoabe@gmail.com Jornalista do O POVO

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