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E se Marco Polo visitasse Fortaleza
Opinião

E se Marco Polo visitasse Fortaleza

Edição Impressa
Tipo Notícia

Uma amiga me falou de forma muito bem-humorada qual a principal lembrança que ela tem tido de Fortaleza quando viaja: as farmácias em cada esquina. Enquanto tomávamos um café e ela relatava os episódios da última viagem feita no fim de janeiro, brincou ao contar que sentiu uma falta medonha da cidade quando feriu o dedo na sombrinha que usava e precisou, às pressas, de um medicamento. Soube que a farmácia mais próxima estava a quilômetros de distância. Como isso pode acontecer?, reclamava minha amiga, no balcão de informações ao turista, no local onde estava. 


É um fato que a paisagem de alguns bairros de Fortaleza tem sido alterada pela avalanche de lojas com bandeiras vermelha e azul que parecem brotar já prontas, lindas e iluminadas bem à nossa frente. Durante o dia, a luz excessivamente branca desses estabelecimentos chega a criar um contraste com o amarelo vivo do sol fortalezense. À noite, uma dessas farmácias, vistas de longe, parece um imenso sol pálido.
 

O assunto farmácia também passou a fazer parte das rodas de conversa. Outro dia me perguntaram se eu tinha conhecimento de alguma pesquisa que apontava algum acréscimo importante na quantidade de doentes na Capital. 

 

Um parente que se acha muito bem informado me contou “a verdadeira história” – à espera da minha confirmação – que havia motivado a disputa pelas esquinas da cidade. O relato era tão bem contado e tinha tal verossimilhança que se não fosse por um certo histrionismo, próprio das lendas urbanas, teria sido capaz de acreditar. Ficou visivelmente frustrado quando eu disse que ainda não tinha ouvido aquela versão.
 

O melhor mesmo tem sido o humor em torno das farmácias. Os memes, que eu considero o novo formato de crônica social – que talvez seja o que a caricatura e a charge foram para o impresso – são muito divertidos. O último que eu vi foi sobre uma viagem exploratória ao planeta vermelho. Ao chegar em Marte, uma surpresa. Os astronautas já encontram nossas farmácias.
 

É claro que farmácia há muito mudou o conceito e deixou de ser apenas um local onde se compra remédios. Mas vamos concordar que caso o imperador Kublai Khan interrogasse Marco Polo sobre Fortaleza, não haveria jeito de o veneziano ignorar nossas praias ... E as farmácias. Tentando fazer Khan entender o motivo da cidade dispor de tantos desses estabelecimentos é provável que lhe dissesse: “Os olhos não veem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas”.
 

Khan e Marco Polo são personagens do livro As cidades invisíveis, de Italo Calvino. Nele, o famoso viajante Marco Polo descreve para o imperador Kublai Khan as inúmeras cidades do império conquistado pelos mongóis. Como era impossível para Khan ir a todas as cidades do seu imenso reino, Polo as visitava e as narrava ao soberano.
 

Se cada cidade tem sua memória, tem também seus símbolos, seus desejos e guarda coisas ocultas aos olhos ligeiros de um viajante. Por isso, ao descrever Olívia ao imperador Khan, Polo observa: “Você sabe melhor do que ninguém que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, há uma ligação entre eles.”
 

Caso nos visitasse, Marco Polo talvez se perguntasse o que seria de Fortaleza se houvessem menos farmácias e mais bibliotecas, museus, livrarias, teatros, cafés, parques lindos e bem iluminados, espalhados aos montes pela cidade. 

 

Claro que haveria outro discurso sobre Fortaleza. Discurso que se confundiria com a cidade.

 

Regina Ribeiro
reginaribeiro@opovo.com.br
Jornalista do O POVO

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