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As cartas que nunca receberemos
Opinião

As cartas que nunca receberemos

Edição Impressa
Tipo Notícia

Ao ouvir que os Correios indenizarão todas as correspondências queimadas no incêndio da véspera da Quarta-feira de Cinzas, soltei meio boba: e as cartas de amor que nunca chegarão? Aquelas escritas à mão, sem registro, sem código de barras, sem comprovante de envio? Aquelas que não vêm da China, que não burlam impostos, que não encontram lugar no inbox do Facebook, que não cabem em e-mails? As urgentes, as desesperadas, as fofas, as mal-amadas, as gostosas, as ridículas, as saudosas, as que se desculpam, as que fazem promessas? 

Lembrei de um casal que, em 1997, se mandava cartas para diminuir o Atlântico. Criança e desavisada, achei uma caixa cheia de juras de amor. Ainda consigo enxergar as letras desenhadas em cada envelope, uns compridos e outros quadrados com aquele verde-amarelo nas pontas. Hoje já não se falam, não citam Djavan e as cartas parecem ter sofrido um incêndio particular.  

Um tempo desses, mandei um bilhete para um rapaz que está em outros territórios. Cinco linhas em um e-mail. Algumas horas depois, recebi a resposta. Fiquei com aquele frio bom na barriga, Chico Buarque e Nara Leão cantaram Dueto na minha cabeça, mas eu queria mesmo era saber como era a letra dele e depois guardar o pedaço de papel em uma caixa para encontrá-lo em alguns anos. As cartas que sobrevivem ao tempo, e ao fogo, podem nos dizer que fomos capazes de amar, ainda que por um instante. E, mais do que do outro, uma carta pode ser uma lembrança boa de si.  

Imagino, agora, a tristeza de quem não receberá a carta queimada. Pior: de quem nunca saberá que era destinatário de um sentimento capaz de materializar-se e viajar por tantas mãos carinhosas. Escrevo este texto para pedir que insistam nas cartas. Que não desacreditem, que reescrevam, que mandem de novo. Aos que nunca o fizeram, peço que arrisquem agora enquanto há tempo e o fogo já se apagou.

 

Iana Soares ianasoares@opovo.com.br Jornalista do O POVO

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