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Marília Lovatel: Porque tenho esse vento aqui a me empurrar
Opinião

Marília Lovatel: Porque tenho esse vento aqui a me empurrar

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No meu texto cabe o Ceará e no Ceará cabe o mundo. Essa tem sido uma descoberta, desde que publiquei meus primeiros contos, em 2012. Cinco anos e nove livros infanto-juvenis depois, experimento o mistério de conviver com originais de romances voltados ao público adulto.

 

Dois deles estão na primeira versão sujeita a centenas de alterações. Ou à aposta nos concursos, com autoridade para me dizer que estão prontos. O terceiro deles sofre a irregularidade de um processo criativo em que dou um passo pra frente e quatro para trás.


Raras vezes foi diferente. Aquela primeira publicação, por exemplo, esperou 20 anos até um vento soltar as páginas da gaveta. Ele veio, invadiu as minhas histórias, desarrumou o penteado das palavras, devastou os meus canteiros, arrancou as mudas frágeis com raiz e tudo, trocou as coisas de lugar.


E continua a soprar. Às vezes, se acompanha de dias quentes, ensolarados, com um céu azul cortado por rasantes de arraias coloridas. Outras vezes, traz o temporal. Chovem grossos pingos de uma água infindável.


Escrever é se render ao vento interno. Entregar-se à brisa brincando nos livros guardados em cada pessoa, ventando de dentro para fora, formando o redemoinho que uma hora se solta. E não se pode mais segurar.


Acostumei-me à desordem da ventania, às muitas vidas paralelas, aos enredos entrelaçados, aos fios narrativos compondo a trama de um tecido que o ar engravida e carrega oceano à fora em desconhecida direção.


Cada livro é uma jangada em mar aberto. E me deixo levar. Não tento conter. Não ouso enfrentar. Não subestimo essa força da natureza.


No Ceará os ventos são intensos. E os que sopram por dentro são ainda mais.


O meu começou de repente. E, de repente, pode sossegar, no silêncio em que tomarei as palavras desgrenhadas na tentativa vã de penteá-las, no esforço inútil de replantar as mudas arrancadas e de recolocar as coisas no lugar.


Nada será como antes dessa energia eólica iluminar meu pensamento e meu caminho.


Por isso, escrevo. Porque, no momento, tenho esse vento aqui a me empurrar.

 

Marília Lovatel

marilia.lovatel@fariasbrito.com.br

Escritora

 

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