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Rosemberg Cariry: "Paula Geórgia e os peregrinos do deserto"
Opinião

Rosemberg Cariry: "Paula Geórgia e os peregrinos do deserto"

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O Santo Sepulcro, na cidadela sagrada de Juazeiro do Norte, é a última fronteira da religiosidade popular. Lugar de espinhos e pedras. Refúgio dos iniciados nas Utopias do Espírito Santo e na espera da Terceira Era – um tempo de justiça e igualdade, de fartura e bem-aventurança. É o subterrâneo dos corações piedosos, dos penitentes e dos hereges amados por Deus. É o final da viagem para os peregrinos cansados das longas caminhadas, em busca de revelações e de pagarem promessas que só se cumprem se estiverem longe da vigilância da Igreja. Aqui têm pouso os místicos solitários, feito os eremitas do deserto da Tebaida. Aqui se refugiam os beatos, por 40 dias e 40 noites, para serem tentados pelos demônios, antes das suas missões no mundo.

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Aqui se ajuntam os Mestres Cabaceiros – guardiões das sementes sagradas das cabaças e dos vinhos da jurema preta, nas mesas de Catimbó. Aqui estão a pedra sobre a qual foi erguida a cruz que Jesus foi crucificado e a gruta de Belém, onde nasceu o Menino Divino. Feito um oroboro (a cobra que morde o rabo e se contorce fazendo um 8 deitado), nesse espaço multifacetado e atemporal, estão a morte e a vida, em seus segredos cósmicos, em que tudo é movimento e impermanência. O tempo é uma grande ilusão, pois aqui as janelas dos mundos se abrem, como universos paralelos. O fim dos tempos beija a boca do princípio. Aqui estão os túmulos dos homens santos, e, invisíveis, estão os espíritos dos índios Cariri, os orixás e os segredos de um sertão que vai virar mar, quando Juazeiro se desencantar na Nova Jerusalém. Nesse chão sagrado, os pajés Pankararus balançam os seus maracás, tragam o fumo sagrado de Badzé, dançam e cantam para os encantados.

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Como documentar essa força, energia e fé? Qualquer foto naturalista que congele o tempo e o movimento roubará a essência da alma ao construir uma realidade que é apenas simulacro, pois se revela apenas como recorte de uma vida mais ampla, movediça e cheia de mistérios. Talvez por isso, a fotógrafa Paula Geórgia, com intuição e a sensibilidade da arte, descobriu que a sobreposição de camadas de imagens, captadas pela virtualidade da câmera digital, iria revelando as peles sobrepostas e manifestas dos mitos, dos arquétipos, dos fantasmas – imagens e sombras de muitos tempos, que revisitam a contemporaneidade e usam os homens e as mulheres reais (os peregrinos) como cavalos das almas antigas, dos espíritos índios encantados e dos orixás. Nessas fotografias de janelas abertas entre mundos, mesmo a imagem congelada busca o movimento pela imaginação e vontade de alcançar o mistério daquilo que ousa capturar.

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O que a razão não explica, a alma inquieta-se em traduzir, na forma de sentimentos. Nessas fotos, a matéria existe como emanação do espírito e torna-se transparente para que sejam decifrados os enigmas perdidos dos deuses e das deusas antigas, manifestos em humanidade.


Estou comovido com essas fotos e com essa exposição. Elas nos convidam a ser um eremita na solidão do deserto e a buscar na alma purificada pelo silêncio a essência

das pedras. Olhando-as, lembro-me do que escreveu São Bernardo: “Achareis mais coisas nos desertos do que nos livros; os arbustos, as pedras vos ensinarão o que os mestres não saberiam ensinar. Pensais que não podeis sugar o mel das pedras e o óleo para candeia do mais duro rochedo?”. 

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Rosemberg Cariry

ar.moura@uol.com.br
Cineasta e escritor

 

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