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Marilia Lovatel: "A fração solidária do que ninguém faz ideia"
Opinião

Marilia Lovatel: "A fração solidária do que ninguém faz ideia"

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Você não faz ideia da falta que faz uma pessoa que parte e nenhuma possibilidade existe de tornar a vê-la. Você não sabe o que fazer com o tempo que ela deixou livre para você. Você sequer sabe para onde ir e aonde chegar. As palavras da prima Helena poderiam ser minhas.

 

Ao lê-las, cheguei a me ouvir, a voz libertada da mudez com que tantas vezes organizei as mesmas silenciosas sentenças, desde que experimentei a primeira grande partida. É exatamente assim. Para alguém fazer ideia de uma saudade que nos habita seria necessário estar dentro de nós.


Contudo, a verdade de Helena é minha. É de todos. A morte de maridos, esposas, pais, irmãos, filhos nos iguala ao imaginar que ninguém faz ideia da falta que sentimos. Ninguém vive nossa perplexidade diante da impossibilidade de continuar a última conversa, de seguir com a rotina da presença, de ocupar o tempo livre que trocou de lugar com quem não está mais.


Após uma grande perda, constatamos nossa incapacidade para moldar na luz um rosto, nossa inabilidade para reter no vento um beijo, nossa incompetência para disfarçar a tristeza que vem morar no fundo dos olhos, nossa inaptidão para ver além da incerteza de desconhecer como poderia ter sido.


Desejamos que houvesse mais dias. Mesmo que não tenham sido perfeitos todos os dias. Ainda que não o digamos. Ainda que nos apossemos das palavras alheias para expressar os sentimentos nossos. Ainda que emprestemos as nossas palavras para a expressão dos sentimentos alheios.


Para confortar, compreender, é preciso dividir uma dor inteira em pedaços que a diminuam. Para ter conforto, ser compreendido, é preciso partir a dor nesses menores pedaços de maneira que muito pouco, quase nada machuque quem se dispõe a receber a fração solidária do que ninguém faz ideia.


Nem tudo foi perfeito, ela disse. Você apenas se questiona como teria sido bom se tivesse sido perfeito. Assim como me questiono como seria bom se essas palavras fossem só minhas. E ninguém mais sofresse por não fazer ideia de como é. Nem mesmo minha prima Helena.

 

Marilia Lovatel

marilia.lovatel@fariasbrito.com.br

Escritora

 

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