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Rosemberg Cariry: "Os milagres de Delfina"
Opinião

Rosemberg Cariry: "Os milagres de Delfina"

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A minha infância em Farias Brito (antiga Quixará), onde nasci e vivi até os cinco anos de idade, foi marcada pela presença de pessoas extraordinárias. Uma delas foi Delfina – mulher de pele suave e reluzente da cor da jabuticaba, que, nas boas fases em que mostrava algum sossego do espírito, trabalhava como doméstica nas casas dos menos pobres, pois por quase toda a cidade se estendia a linha da pobreza. Por vezes, ela sumia na mata da serra do Quincuncá, nas ribeiras do rio Cariús. Voltava com uma cesta cheia de frutas silvestres e bravias: bananas de croatá, canapum, cambuís, cajuí (um cajuzinho selvagem, amargo e travento, de cores intensas), cajás, pitombas e oitis... Reunia, então, as crianças em torno de si e distribuía aquelas frutinhas, como se desse a elas pepitas de ouro.

Ela era uma “mulher de lua”. Em determinados dias santos de cada mês, exatamente na hora aberta do pingo-do-meio-dia, ela deixava os seus afazeres e buscava a rua, onde recebia os mais inclementes raios de sol. Postava-se como uma mãe de santo a girar o corpo. Colocando as mãos erguidas para o céu, por meio de certos gestos rituais, ela fazia os seus “milagres”. Falava diretamente com Deus e implorava: “Fazei que caiam sobre a terra cem milhões de sacas de arroz, duzentos milhões de sacas de feijão, cinquenta milhões de caçuás de macaxeira, oitenta milhões de toneladas de carne do sol”. Milagres superlativos. O delírio da fome, talvez.


No tempo obscuro de hoje, em que cresce a miséria, aumenta (em progressão geométrica) a concentração dos bens da nação nas mãos de 5% de privilegiados, aliados dos grandes interesses transnacionais e paladinos do conservadorismo neoliberal em voga, é cada vez mais difícil a situação dos marginalizados e dos mais frágeis na hierarquia social: negros, mestiços pobres, mulheres, crianças, velhos, índios, gays... No Brasil, como um tsunami, ergue-se uma onda neofascista de perseguições e brutalidades com vistas à destruição de um conjunto de árduas conquistas sociais e culturais. O Brasil está margeando a perigosa “zona cinza”, em que a moralidade é suspensa e o pacto civilizatório se revela em sua fragilidade, deixando irromper a “caixa de Pandora” de todos os demônios, atrocidades e horrores que o autoritarismo do capitalismo neoliberal traz em sua sombra.


Em meio a tanto desalento, tomo da licença poética, e invoco a figura de Delfina, fazendo-a girar na esplanada dos ministérios, em Brasília, operando os seus “milagres”. A sua voz possante se fará ouvir pelos cerrados e sertões, pelas florestas e pelos mares: “Fazei com que caiam sobre o Brasil duzentos milhões de vergonha na cara, cem milhões de insubmissão, quatrocentos milhões de autoestima, cento e cinquenta milhões de senso de liberdade e justiça!” Vejo ainda Delfina distribuindo aos zumbis a que fomos estranhamente reduzidos as suas frutinhas mais raras: Esperança e Dignidade. 

 

Rosemberg Cariry

ar.moura@uol.com.br
Cineasta e escritor

 

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