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José Borzacchiello da Silva: "De volta para o passado"
Opinião

José Borzacchiello da Silva: "De volta para o passado"

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Vai longe o tempo quando pobreza e miséria eram idealizadas, recheavam o cancioneiro popular e se firmavam como mote para diferentes expressões artísticas. Noutra direção, a constatação da trágica situação do País já há muito motivava e mobilizava artistas e intelectuais como ocorreu na Semana de Arte Moderna de 1922 envolvendo importantes setores da elite paulistana com repercussão em todo o território nacional e demarca tomada de posição, quando do centenário da Independência do País, com raras mudanças no plano político e econômico e quase nada a comemorar.

 

A partir do pós-Segunda Guerra, a sociedade avançou em direção a um processo civilizatório e exigia do Estado políticas públicas capazes de melhorar as condições de vida de milhões de cidadãos e reduzir a pobreza e a miséria dominantes no País. A caminhada foi difícil e o famoso “país do futuro” só festejaria, na primeira década do século XXI, mesmo que em pequenas doses, a inclusão social de milhões de famílias, tudo graças às políticas de transferência de renda pautadas no pressuposto do pagamento da enorme dívida social, especialmente com os negros, pardos, mulheres, crianças e idosos. Historicamente, a pobreza, por incrível que pareça, encantava e inspirava muitos.


As paisagens dos morros a partir de olhares românticos, quando cantada animava muita gente, seja a “Famosa Maloca” do Adoniram Barbosa ou “Ave Maria no Morro”, de Herivelto Martins, seja o clássico “Chão de Estrelas”, de Sílvio Caldas com a belíssima letra: “A porta do barraco era sem trinco/e a lua furando nosso zinco/ salpicava de estrelas nosso chão”. É linda! Mas pelos mesmos furos atravessados pela luz da lua passa a chuva que, conforme a “Balada da Caridade” que Padre Zezinho escreveu: “Para mim a chuva no telhado/É cantiga de ninar/Mas o pobre meu irmão/Para ele a chuva fria/Vai entrando em seu barraco/E faz lama pelo chão”.


Pobre é pobre em qualquer contexto. Romantizar a pobreza, ter saudades de coisas simples, tidas como singelas como as relembradas em “Gente Humilde”, com letra de Anibal Augusto Sardinha, o Garoto, depois com Vinicius de Moraes e por último Chico Buarque de Holanda, comove muito, mas não altera a condição de vida dos sujeitos sociais inseridos em condições de extrema vulnerabilidade social.


É hora de pensarmos nossa tragédia social com o retorno de milhões de famílias às condições inaceitáveis de pobreza e de miséria absoluta.

As músicas citadas referem-se às questões da moradia. Imagine as ligadas à mobilidade urbana como “O Trem Atrasou”, de Paquito, Estanislau Silva e Arthur Villarinho com a bela letra “Patrão, o trem atrasou/Por isso estou chegando agora/Trago aqui um memorando da Central/O trem atrasou, meia hora/O senhor não tem razão/Pra me mandar embora”.


A sensibilidade é um ponto de partida para o reconhecimento da grave situação que vivemos, porém não é suficiente. Quem canta seus males espanta, mas só a cantiga não resolve. As letras e músicas exercem excepcional papel social. A ação é nossa, “caminhando e cantando, seguindo a lição”, como nos dizia Vandré. Quem sabe faz a hora e já é hora de fazer. 

 

José Borzacchiello da Silva

borzajose@gmail.com

Geógrafo e professor emérito da UFC

 

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