As cenas são chocantes: pessoas atirando-se sobre latas de lixo, recolhendo materiais recicláveis e a comida, devorada com unhas e dentes debaixo de árvores e marquises; a disputa com a máquina de triturar lixo, lançando “para fora o que antes havia sido atirado para dentro, como se retirassem da boca do inferno as almas ainda passíveis de serem salvas”; as longas jornadas, noite adentro e sol a pino, de legiões descartadas do emprego formal.
A atividade desses trabalhadores realiza três mediações: arranca do caminhão do lixo e conduz aos depósitos produtos que, pela reciclagem, merecem “nova vida no mundo das mercadorias”; alimenta a poderosa indústria da reciclagem; arremete os trabalhadores contra as forças sociometabólicas que os condenam ao descarte. A sorte e o azar é que são elos necessários da cadeia produtiva do lixo e sua força de trabalho goza e sofre o fato de merecer nova vida no mundo das mercadorias – como os produtos recicláveis.
O livro, que será lançado às 18 horas de hoje, quinta-feira, 23/11, na Biblioteca Lívio Xavier (sede do Psol), é, portanto, uma visita ao inferno dos rejeitos da sociedade. Indivíduos expulsos do emprego que resistem como mercadoria, vendendo-se a preço vil, abaixo do salário mínimo.
O pesquisador é consciente de que “a manifestação e as condições do trabalho no lixo não se explicam em sua escala de existência material imediata e aparente”. Com efeito, “o fenômeno é a porta de entrada para o entendimento de questões mais amplas e complexas ligadas à produção/reprodução da sociedade do capital”.
Nesse trânsito entre fenômeno e essência, Montenegro demonstra que o desemprego, o consumo consumptivo e a produção destrutiva são leis inerentes ao sociometabolismo do capital. Como tais, atuam com forte poder de coerção sobre os indivíduos, pondo e repondo suas condições materiais e espirituais de existência.
Eis como o sociólogo desvela os fios invisíveis que religam a atividade de catação e a portentosa indústria da reciclagem. De um lado, a espoliação do trabalho e sua miséria e, do outro, a apropriação e usufruto da riqueza.
O livro é, pois, um convite aos que buscam enxergar além da face visível dos fatos – sem descuidar destes.
Epitácio Macário
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