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Cláudia Leitão: "Sobre a memória e o direito à memória"
Opinião

Cláudia Leitão: "Sobre a memória e o direito à memória"

A memória necessita de lentidão, ao mesmo tempo em que carece de espaço, para ganhar materialidade
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O que á a memória? Ou para que ela serve? Memória é lembrança, mas é também esquecimento. Daí a sua importância na construção de nossas subjetividades. Sou o que lembro, mas também sou aquilo que esqueço, ou o que não quero lembrar. Mais do que o legado acerca de grandes relatos, a memória é responsável por uma espécie de “arqueologia do social”, ou seja, enquanto processo e produto coletivo, ela deve ser percebida, sobretudo, nas entrelinhas das narrativas, ou seja, nos seus silêncios e esquecimentos.

 

Quando Milan Kundera reflete sobre a memória, ele enfatiza um dos seus maiores pressupostos e, possivelmente, o mais ausente, nas sociedades em que vivemos: o tempo. Não se trata aqui do tempo veloz no qual vivemos, tempo do fazer sem contemplar, do consumir sem refletir, do usufruir sem fruição. A memória necessita de lentidão, ao mesmo tempo em que carece de espaço, para ganhar materialidade. A memória também tem sido historicamente objeto de “assepsias”. Quantas vezes já ouvimos a expressão “limpeza da memória”, como se pudéssemos livrá-la de suas impurezas! A obsessão de se construir uma “memória branca”, que nos impede de “voltar à cena do crime”, é a responsável por retirar de nós a anima do viver.


Memória é menos conservação do que invenção. E mais, ela projeta, recria e refaz, a partir das circunstâncias e ao sabor do acaso. Por isso, sua acidentalidade não interessa ao ethos moderno, que trata o passado como “aquilo que deixou de ser”. Segundo Olgária Matos, a modernidade nos fez imergir de forma cada vez mais profunda na matéria, atrofiando nosso espírito, levando-nos a perder nossa melhor faculdade, a de imaginar.


As diversas narrativas nas redes sociais vêm nos estimulando a lembrar fatos atrozes da nossa história para não repeti-los. Ditadura, censura, tortura, perseguição são mais do que palavras para todos aqueles que viveram em tempos sem liberdade, marcados pela dor e pelo medo.


Entre os direitos humanos, talvez seja o direito à memória um dos mais significativos e simbólicos, nesses tempos fugazes do “aqui e agora”. E é tarefa do Estado reconhecê-lo e garanti-lo, enfatizando que o direito à memória nasce da mesma mãe de todos os direitos humanos: a liberdade. Sem liberdade não há memória, não há tempo nem espaço para a diversidade das expressões humanas. Sem liberdade a arte sucumbe, a cultura se extingue, o conhecimento se empobrece, a vida empalidece. Perdemos todos. É bom lembrar... 

 

Cláudia Leitão

claudiasousaleitao@yahoo.com.br

Professora e pesquisadora da Uece, consultora em Economia Criativa; diretora do Observatório de Governança Municipal do Instituto

de Planejamento de Fortaleza (Iplanfor)

 

 

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