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Clarissa Freitas: "Moradores invisíveis e a cidadania urbanística"
Opinião

Clarissa Freitas: "Moradores invisíveis e a cidadania urbanística"

Não adianta "dar o papel da casa" sem registrar a cidade em que ela está inserida
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Nesta semana saiu na imprensa a crescente procura por atendimento na Defensoria Pública do Ceará (DPE) de pessoas relatando ausência de registro de nascimento. Ao contrário do que muitos costumam pensar, esse não é um problema individual, mas um problema nosso enquanto sociedade: além da dificuldade em acessar os serviços públicos, a pessoa sem registro fica fora das estatísticas de órgão oficiais que informam as políticas públicas. Se os dados não correspondem à realidade, qualquer tentativa de solucionar os problemas será imprecisa e inadequada. Nas últimas décadas, o Brasil avançou muito na garantia do registro civil da população. Isso demonstra que temos capacidade institucional, e nos motiva a envidar o mesmo esforço para combater outras dimensões da invisibilidade do cidadão perante a sociedade.

 

Uma delas é a invisibilidade urbanística. Existem porções da cidade que são espaços opacos, onde o controle urbanístico não se aplica porque nem se sabe de que forma a legislação incide sobre aquele território. Lutamos pela preservação ambiental dos espaços valorizados da cidade, e esquecemos que, na periferia, as margens das lagoas legalmente protegidas sofrem um processo de ocupação continuada e invisível à opinião pública. Moradores dos espaços opacos têm dificuldades de comprovar endereço, não porque não adquiriram suas casas de forma legal, mas porque não possuem rua, bairro ou CEP.


Já fui a conjunto habitacional com mais de mil unidades em que o Correio não entrava porque os edifícios não tinham numeração. Fortaleza cresce de uma forma descontrolada: a prefeitura chega a pavimentar uma rua, sem construir uma denominação oficial compatível com os cadastros das companhias de serviços urbanos. Os moradores invisíveis ficam sujeitos a uma lógica de clientelismo para ter acesso aos serviços, pois não possuem “cidadania urbanística”.


Temos discutido a necessidade de aprimorar os registros individuais de propriedade, porém desconsideramos completamente que não adianta “dar o papel da casa” sem registrar a cidade em que ela está inserida. As geotecnologias são uma enorme oportunidade para combater a invisibilidade urbanística de forma integrada e estruturada. Porém, para o Estado Brasileiro, parece ser funcional que este problema permaneça de difícil mensuração: a gente não prioriza aquilo que a gente não vê. E o nosso déficit de urbanização só tende a continuar... 

 

Clarissa Freitas

urbcla@gmail.com

Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFC; possui pós-doutorado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade de Illinois Urbana-Champaign (EUA)

 

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