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Um viver severino que se fabrica
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Um viver severino que se fabrica

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ANA MARY C. CAVALCANTE
REPÓRTER ESPECIAL. anamary@opovo.com.br


A saudade era um descampado na comunidade Cajazeiras, interior do município de Madalena (Sertão Central). “Tava com seis anos” que a agricultora Maria Auxiliadora da Silva Lima, 55, não via o “canterim plantado”, o mamoeiro, o pé de limão: “Olhava aquele alto acolá, parecia que tinham jogado um monte de cinza”.
 

Era uma tristeza que ia bater no Canindé, a 69 quilômetros dali. O povo do assentamento Monte Orebe viu morrer os açudes de novembro pra dezembro passado. Milho ou feijão não tinham força para vingar. Os animais, moedas de troca, iam definhando. O agricultor João Varela da Costa, 70, nascido na fazenda de onde se fez o assentamento, filho do vaqueiro, assombrou-se com a última seca: “Esse secarau que houve de 58 pra cá, tenho pegado todas. Mas a dos últimos cinco anos foi das piores. Nunca tinha visto esse açude seco e, agora, vi. Secou que rachou”.
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Piçarra adiante,Maria de Fátima Uchoa Souza, 53, a dona Mariinha do sindicato, “viúva, mãe de três filhos, assentada, agricultora”, sempre se desdobrou para continuar a vida naquele fim.“A gente é sertanejo do coração valente, continua trabalhando porque a vida do agricultor é essa mesmo”, vive. “Morar no sertão tem que ter coragem”, emenda.
 

Se a plantação tradicional não brotou, Mariinha tirou o leite de duas vacas e passou o verão vendendo dindim de fruta. Ou se somou a nove mulheres do assentamento, para ser mais forte, trocar experiências e ajudar a terra seca a parir um quintal de frutas, horta, plantas medicinais e forragens.E ainda mantém, como é possível, uma criação de galinha, porco, bode e gado, para o consumo da fome.
 

A primeira lição da seca dos últimos tempos, os sertanejos aprendem, é não ficar só esperando a vontade de Deus.É bem verdade que querer tirar a fé do sertanejo é o mesmo que querer tirar a alma do sertão. Mariinha acredita que “a chuva é uma bênção divina”, a mulher de seu João fez promessa para chover e Auxiliadora dobrou os joelhos até Deus se lembrar de mandar chuva. Mas a falta ensina a conviver com a pouca água que o sertão dispõe.
 

Da vida sertaneja, Auxiliadora tem “mais lembrança de seca. De dias difíceis, de muita luta, de muitas necessidade”. É um viver severino, mas que se fabrica. “A gente tem que se manifestar, trabalhar e perseverar pra ter uma vida digna”, orquestra Mariinha.
 

Para atravessar a última estiagem, conta, muitos se valeram de auxílios dos governos, como Bolsa Família e Seguro Safra, além da aposentadoria. Poços profundos, carros-pipa e cisternas foram outros sustentos para as pessoas, as plantações e os animais.“Se tiver como armazenar água, você passa a seca e o inverno quase sem muita diferença. A chuva é abundância, mas nós tem que saber conviver com a seca também”, considera Mariinha.
 

O sertão cria para se querer o suficiente. Plantar e colher. “No campo, é muito bom de se viver. Tem os momentos difíceis, mas, na vida, tudo né muito bom, não. E a gente, agricultor, já é acostumado a viver nesses momentos”, relaciona a sertaneja. Ela, Auxiliadora e João produzem para si e para as feiras de agricultura familiar. Da infância à velhice, foram se adaptando ao tempo no semiárido.  

Auxiliadora tentou comercializar galinha, não deu certo. Então, propôs ao filho mais velho a produção e venda de verduras. 

 

Armazenando e regrando a água que conseguia do açude ou dos carros-pipa, tem “de tudo, um pouco”: pés de limão, capim santo, hortelã, malvarisco, corama, mastruz, pimenta, pimentão, cheiro verde, mamão. E “mais de 20 mil pés de palma”, sua riqueza: “Na seca, vende muito”.
 

Em pleno sertão de Canindé, Mariinha também realizou uma transformação: onde só tinha pedra, ela aponta, fez um quintal produtivo. Foi cuidando da terra, abolindo as queimadas e cobrindo o solo com o esterco dos bichos. “Hoje, o que eu plantar nele, ele dá”, assegura.
 

A vida sertaneja tem seus milagres, compensações e sentimentos.“Meu pai tava aqui desde 42, 43. Dali pra cá, começou a nascer a família, eu me casei com essa paraibana, acostumada aqui mais eu”, completa-se João.É uma vida tão incerta quanto a chuva, mas que, por vezes, acontece. Como naquela manhã de fevereiro, quando voltou a chover. Os bichos se alegraram, remediou-se a saudade. 


“Fui pro alpendre e fiquei olhando pra chuva... Me deu vontade de pular, de gritar, de chorar, correr dentro do quintal. Era de alegria porque ia fazer seis anos que ninguém via água”, abraça Auxiliadora. Para a agricultora, a chuva “é comparável a uma pessoa que tá distante, que a gente não tem notícia e volta. É aquela alegria com aquela satisfação de amor”.

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