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O bem-querer feito cordão umbilical
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O bem-querer feito cordão umbilical

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Mais do que viver a falta, o sertanejo (quem criou raiz na terra árida) vive o que tem. Não que a fome, a sede ou o menos lhes seja destino. Não, isso não é destino de nenhuma vida. Mas é que os pertences – uma morada, um roçado, uma criação, um resto de rio, uma fé, qualquer chuva, o gosto de um bolo, um punhado de memórias - são, para o sertanejo, certa fartura. No sertão, a vida que se vive é a vida que se conheceu.


“A maneira que a gente se agarra no sertão é isso: eu não tenho outra coisa que fazer. Você não sabe viver na cidade, gosta do Interior”, expressa o agricultor José Vital Neto (seu Dedé), 68, em par com a agricultora Antônia Ivone de Araújo Vital, 62. Eles estão casados desde 1976 e moram na Fazenda São Braz, a 15 quilômetros de Tauá. E, mesmo sendo só os dois sob o sol inclemente do Sertão dos Inhamuns, não pensam em migrar. “Não me sinto como teimosia. Me sinto como saudade e como o lugar que eu nasci e me criei. Que fui feliz nesse lugar”, permanece dona Ivone.


Uma felicidade simples, garimpada desde tempos que eram difíceis “e a gente vivia sem dar fé daquela dificuldade”, emenda seu Dedé. A felicidade da infância, por exemplo, que transformava sabugo em boneca, restaura dona Ivone. Ou a presença da mãe a lavar e remendar a roupa de 14 filhos à mão. Ou as novenas na casa alheia. Ou a dança a noite inteira, ir e voltar três, seis quilômetros a pé. Ou o rio quando enchia, e os irmãos atravessavam a feira do povo do Marruás na balsa de mulungu. Ou comer o que se produzia, sem medo de fazer mal, pilar o milho, torrar o café, o queijo de manteiga do pai. “Aquilo era a maior felicidade!”, engrandece dona Ivone.


A fartura em plena falta. O casal de agricultores já teve de carregar água, na cabeça ou no jumento, três, quatro quilômetros. “Aqui, nunca deu quatro meses de inverno”, subtrai seu Dedé. Ele se lembra “de muita safra” só até a década de 1960. “Foi uma década de inverno. O mais foi um (ano) sim, outro não; dois sim e dois não; dois não e outro sim... Agora mesmo tá desastroso”, assinala. A derradeira lembrança da chuva, para ele, foi em 2009. Depois, a chuva se arretirou, deixou a saudade.


Seu Dedé vendeu os gados e as ovelhas da fazenda de 200 e poucos hectares, herança do pai desde 1965. Ele e dona Ivone viram os três filhos tomarem o rumo do mundo, se aposentaram. Cada ano, o tempo pesa mais. A chuva faz mais falta. “As águas vão sumindo. Estamos sobrevivendo de poços profundos. Quem tem condição faz, quem não tem vai pedir”, reflete o agricultor. O povo também vai sumindo, cansando, não sobra gente pra tentar a plantação. “Os que não morreram migraram pra outros cantos. A única que tem aqui, desde o nascimento, sou eu”, completa dona Ivone.


E por que se fica? Porque quem aprende a querer bem nunca se vai de vez. E o sertão ensina esse bem querer. “Não tenho vontade de sair daqui. Não gosto de sair daqui”, responde seu Dedé. “Eu sinto saudade da roça”, costura dona Ivone os dias brandos e os anos de sol.


Não é viver só as saudades, essa falta. É viver o que se tem, mais uma vez. Ainda que o verão seja triste e cinza, diferente da alegria e da cor da chuva, “mesmo assim é gostoso”, afirma dona Ivone, permanecer no sertão. O sertão é a gentileza do mundo. “Você amanhecer o dia ouvindo os passarim cantar, acordar pelo canto passarim... Fazer um bolo, Dedé fazendo palavra cruzada ou jogando paciência no tablet. E eu costuro. Na hora do descanso, jogo no iPad”, atualiza a agricultora. “Mulher, esse tempo de chuva, você vê as planta tudo florida, os bichim tudo animado. É muito gratificante morar no Interior (também) na época de inverno”, adita.


Nunca se vai de vez do sertão, ou sempre se volta. Que nem a chuva – que é, na vida do sertanejo, uma pessoa da casa. “Até porque, quando tá se aproximando o tempo, você tá esperando todo dia. Tá olhando se tem um relâmpago, tá ouvindo se tem um trovão”, revive seu Dedé. A chuva escreve, dizendo que vem. O agricultor sabe ler a natureza: “A gente fica olhando se o passarim cantou, assim por diante. Verdade ou não, cada um tem uma tradição de ver... A formiga carrega o filho de dentro do rio e bota no alto. Aí, é certim que vai chover. A lagoa vai criar água”.


Sabendo do recado, seu Dedé e dona Ivone esperaram a chuva regressar este ano. E ela chegou numa madrugada de janeiro, durou até às 11 horas do outro dia, eles dizem, demorou-se como quem também sentia saudades. E era tanta história que a chuva trouxe “que o radialista não conseguia nem fazer o programa porque todo mundo quer dar notícia de quantos milímetros deu!”, ri-se dona Ivone.


“Quando a chuva bate, de noite, a gente já acorda, todo mundo se levanta! Aí, entra água pelas porta!”, festeja seu Dedé. “Eu nem controlo ficar dentro de casa quando tá chovendo! Se eu pudesse, eu aparava cada pingo de chuva que cai!”, dona Ivone se emociona. (Ana Mary C. Cavalcante)



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