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Entre o Rio e o Roçado - a multiplicação do fazer
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Entre o Rio e o Roçado - a multiplicação do fazer

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Foi o rio Acaraú que fez a agricultora Maria da Saúde Pinto Lima, 60 anos neste maio, se mudar da serra de Guaraciaba para o sertão de Varjota (272,7 quilômetros de Fortaleza). Ela foi ao encontro das águas, para dar de beber à plantação que a acompanha desde sempre. “Na serra, tava seco. Quando eu cheguei aqui, que vi o rio Acaraú, eu disse: é aqui que eu vou ficar”, demarca.


Há 21 anos, a agricultora reconstruiu sua morada a cerca de um quilômetro do rio. Acostumou-se com o calor do sertão. Mais que isso: criou afeição pelo lugar inóspito e possível ao mesmo tempo. “Agora, quando chego na serra, o meu negócio é voltar pra cá!”, reconhece. O sertão lhe deu as coisas que possui: o plantio, a força, os recomeços. “Eu nasci pra viver da agricultura”, espelha Maria.
É uma vida que nasce todas as vezes que chove e que resiste e se reinventa ao longo das secas. “Sou tudo. Tudo o que der pra mim, eu tô fazendo”, amplia-se a agricultora do tamanho do sertão. Houve anos em que ainda se via água no rio, enquanto a terra ressecava. Naquele 2002, era incerto colher banana, goiaba, mandioca, milho, feijão.


A família da agricultora é grande, “dá dez pessoas”, mas nem todos queriam “trabalhar no meio do sol”. Para não depender só da vontade de Deus mandar chuva e “não viver tudo parado, sem fazer nada”, valeram-se do rio. A família abriu um restaurante às margens do Acaraú para somar ao que conseguisse extrair da agricultura.
 

Mais do que a sobreviver, a falta ensina a viver de outro jeito, a adaptar o tanto que se quer ao pouco que se tem. O desejo comum dos sertões, narrado das fazendas às casas ainda de taipa, é ter uma vida digna. Nestes outros tempos de seca amparada por auxílios governamentais ou projetos de ONGs, a luta de cada dia se alia à criatividade e à renovação dos fazeres. A seca ensina, Maria e os seus foram aprendendo.
 

Com as três filhas que moram em casa e o filho mais velho, a agricultora inventou um balneário durante dez anos, até 2012 – o tempo das águas no rio. O restaurante funcionava de segunda a segunda. “Era direto, eu vendia peixe, frango, galinha caipira, cerveja, refrigerante, batatinha”, Maria restaura a fartura. “Tinha dia d´eu vender cem quilos de peixe!”, rememora.
 

Aquele pedaço de rio era conhecido na região. O banho havia se tornado a diversão de um Interior sem mais nada. “Era sábado e domingo, vinha gente de todo canto: Santa Quitéria, Ipu, Sobral, Cariré, Guaraciaba e até de Fortaleza”, conta Maria. Mas vieram também os anos de chuva escassa e foi preciso racionar as águas que desaguavam no rio, a partir do açude Araras, lamenta a agricultora: “O rio secou. Fecharam a água do açude, o açude baixou a água... Secou, morreu o rio”. O restaurante, igualmente, 

agonizava: tinha dia de só vender um peixe frito.
 

Há dois anos, o local está fechado e o rio, sem força. A quadra invernosa deste 2017 até ensaiou revigorar o Acaraú, mas as precipitações não foram suficientes, atestam as histórias de uma época em que se atravessava de canoa onde hoje passa a estrada. “No sertão, geralmente, a chuva é mais pouca. Chuva, mesmo, acho que só foi em 97... Onde nós tamo, cobria nós”, relata Francisco Antônio Pinto Lima, 32, o ano em que o Araras sangrou e o rio Acaraú subiu três metros d´água.
 

Francisco é o filho mais velho de Maria e é quem faz companhia ao pai no roçado, com chuva ou sol. Ele também se desdobra e se recomeça na precisão. (Os outros cinco irmãos não tomaram gosto pelo serviço). “Eu trabalhava na agricultura mais meu pai, aí, comecemo aqui (no balneário). A água secou e voltemo pra agricultura. Desde cedo, que eu trabalhava na agricultura mais ele. Gostava e gosto”, reafirma.
 

Francisco tem um menino de nove anos que ainda não viu chuva da maneira que ele viu, maior do que tudo. “Este ano, o inverno foi bom a vista dos outro”, mede. “Mas ainda falta. Tem muitos legume que tá perigando não dá. Quem plantou cedo, ainda vai dar alguma coisa”, avalia.
 

O roçado é a outra margem da esperança naquele sertão. “Tudo o que a gente plantou, eu tô com fé da gente colher”, projeta Maria. Há quatro anos, a família implantou três cisternas que, juntas, acumulam 84 mil litros d´água – ou cerca de seis meses, ela mensura, sem tanto aperreio. Um poço profundo comunitário também abranda o período de estiagem. “A seca pode ensinar que a gente deve dar valor ao pouco da água que a gente tem”, conclui.
Entre o rio e o roçado, eles multiplicam os fazeres e vão ficando naquele traçado. O sertão, mais do que a serra (onde não restou parente), é para onde as saudades e os afetos também se mudaram. “A família é grande e pra gente sair com um monte de gente é mei ruim”, firma-se Maria que, fazendo “da fraqueza, a força”, deve formar o terceiro filho na faculdade este ano. (Ana Mary C. Cavalcante)

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