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Molhar até onde der
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Molhar até onde der

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um rio que já foi tanto, bem menor o de hoje porque seca seguidamente de tão pouca chuva, vai descendo agora também para outros nordestes. Enche o rio Paraíba até Campina Grande, é esperado antes de Fortaleza colapsar. Terá volume para todos? Os homens decidiram assim, o santo há de prover. Promessa feita de milagre alheio. Fim de tarde, o ondulado brilha de pôr de sol. Água dourada, o belo clichê de sempre de rio tocando o céu. Fachadas sombreando, escurecendo, noite... E o São Francisco indo. Até onde der.
 

Manhã seguinte, dia se criando em Belém do São Francisco (PE), agora silhueta de sol nascendo, desta vez é gente vindo. Das ilhas - são 88 na região. O rio baixou tanto que elas parecem mais, ou maiores. Era mais água, agora mais terra. Das voadeiras desembarcam velhos, novos, senhoras, crianças. Uma fila de canoas na margem.
 

Descarregam bananas, mangas, pimenta de cheiro, jerimum, malas, 

motos, galinhas, carneiros, cintos, cartões de banco. Para fazer negócios ou resolver as burocracias particulares, mesmo num sábado de feira. Enoque João da Silva, o Noca, 30, tem três ovelhas para negociar. “Qualquer R$ 100 tá bom”.
 

Osvaldo Jorge da Silva, o Vadim, 58, criado e mergulhado desde menino no São Francisco, tem uma roça na Ilha do Meio e sempre com muita coisa para vender. Frutas e verduras regadas pelo rio. 

“Também acho que essa água toda indo pra lá, pro Ceará de vocês, vai ajudar. Quando cai no mar é perdida. Vai dar vida a um bando de gente feito nós. O São Francisco vai secar é porque não tem chuva pra encher”, analisa Vadim. Enquanto a mulher, Rosilda, trinca o braço descarregando mais uma penca de banana graúda.
entre os canais
 

População de 22 mil habitantes, Belém de São Francisco agora tambem é terra de faculdades para a região - Direito, Ciências Biológicas, Psicologia, Humanas, Exatas. Cotidiano acadêmico, mas é a vida ribeirinha que referencia. Foi cenário de novela global, Senhora do Destino. O mercado público, pescadores, turismo, casario antigo, bonecos gigantes tradicionais no Carnaval local. Na outra margem já se vê a Bahia.
 

No mapa, Belém está exatamente entre as duas captações da transposição, de onde saem os eixos Leste (Floresta-PE) e Norte (Cabrobó-PE). “Há três anos que essa água tem baixado muito”, diz Luiz Pereira dos Santos, 40, canoeiro, também agricultor da Ilha do Meio. Viver de peixe não dá segurança a mais ninguém. Pouco tucunaré, pirambeba, piau, curimatã. Será que a transposição seca o São Francisco? “Acho que não. É porque não está chovendo mesmo”. Mas tem gente vindo das roças das ilhas quase caminhando até a cidade, lembra seu Vadim.
 

Das cantorias antigas sobre o Chico Velho - de Caetano, Gonzagão, Bethânia, Geraldo Azevedo, Moraes e Alceu, Sá&Guarabyra, Flávio José, Xangai e Elomar ou Vital Farias e muitos mais - também virão versos novos. Outros que falem de Ceará, Paraíba, de terras potiguares, de pernambucos diferentes aonde não passava esse São Francisco. Talvez o rio mais debilitado que a qualquer música antes cantada. Dificilmente revitalizado e cheio, pelo que está posto. Esperando molhar até onde der... As carrancas talvez serão lendas. 

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Cara de karranca
O apelido, que “um engraçadinho” colega de trabalho antigo botou, ele pede que escreva com K. Luis Carlos Ribeiro Pires, 54, é conhecido em Floresta (PE) como Karranca.”Ele dizia que eu tinha cara de cavalo, que parecia uma carranca. Aquele cabra safado...Sou mais bonito”. Karranca garante que não guarda raiva. Um dia, quis se desfazer de uma carranca em casa. Consertava ventiladores e deu de fazer muito frio na cidade. “Achava que aquela carranca dava azar. Quando joguei fora, no lixo, ela caiu de pé, de frente pra mim”. Não quis mais a peça, mas passou a respeitar a figura lendária do São Francisco. E se assumiu Karranca. 

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Tôta é do barro
 

José Viturino do Nascimento, o Tôta, tem 64 anos e há 50 vive do barro. Um dia, meninote em Tracunhaém (PE), em frente a uma olaria, pediu para trabalhar. Aprendeu a burnir (polir), moldar, tratar bem a argila. Nunca mais largou a artesania da terra molhada. Hoje, é um ceramista/escultor que maneja o barro com singularidade, precisão, delicadeza. “Faço de tudo do barro”. A mulher, Sebastiana, esculpe santos. Moram em Petrolândia (PE), à margem da barragem Itaparica, que guarda a água para a transposição. “O São Francisco representa sobrevivência para os que vivem ao redor dele. A transposição não vai beneficiar a mim, mas, pelo que vejo, vai secar o rio. Acho que a solução é viver e sofrer com a tristeza de ver o rio São Francisco se acabar”. 

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Reinações de Zé de Cila
 

Zé de Cila dá um filme inteiro. José Nunes de Araújo Neto, 71, é de Cabaceiras, a “Roliúde Nordestina”, no Cariri paraibano. A cidade foi cenário para mais de 30 filmes. Fica ao lado do rio Paraíba, hoje abastecido pelo São Francisco. O pai era Inácio, Cila era a mãe. “Hoje sou ator conhecido no Brasil e no mundo. É um apelido internacional”, diz Zé, todo garboso. A batina, que usa em entrevistas e quando posa com turistas, foi seu figurino como dublê do padre no filme O Auto da Compadecida (2000). Também o chamavam de Zé das Viúvas. “Namorei de dez a 15 viúvas”. É pai de Lindembergue, Rita Nikácia e Sthalyn Platini. Mora só. Sua loja, de produtos artesanais de couro de bode, está sempre aberta. E ele falando dos feitos na Cabaceiras. 

 

 

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