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O fazedor de água
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O fazedor de água

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Francisco Linhares, agricultor, fala sobre a sua produção de hortaliças e a reutilização do esgoto doméstico. (Foto: Mateus Dantas / O POVO) (Foto: Mateus Dantas)
Foto: Mateus Dantas Francisco Linhares, agricultor, fala sobre a sua produção de hortaliças e a reutilização do esgoto doméstico. (Foto: Mateus Dantas / O POVO)

Não adianta perguntar por "seu Francisco Linhares" ao tentar localizar o sítio onde mora, na comunidade Muxinato, entre Minerolândia e Bonfim, depois de Senador Pompeu (a 274,9 quilômetros de Fortaleza). Pergunte pelo "Chico do Leite", ele mesmo indica, por WhatsApp. "Ah, o Chico do Leite? Você vai em frente, pode ir, é antes da ponte e antes dos homi (Polícia Rodoviária)", reconhece uma vivalma, na travessia da rodovia, dona do melhor GPS do mundo.

Na distância de tudo, a fé batiza e o sertão é sobrenome. O agricultor Francisco Linhares do Ó, 50 anos, se mistura com o ofício que lhe começou no semiárido: "Uma cultura dos avós, de criar bovinos". Ele veio do interior do Pará mais os pais, retirantes de secas passadas, em 1973.

"Naquela época, quando não existia essas políticas de convivência, qualquer estiagem, as pessoas saíam do seu lugar", testemunha. "Antes, não era a convivência, a pessoa queria combater (a seca). Como é que combate? A melhor forma de se conviver, no sertão, é aprender a conviver. A seca nunca vai deixar de existir", sublinha a agricultora Antônia do Carmo de Gois Magalhães do Ó, 44 anos.

Nesse aprendizado, o casal viu que os 36 bois "tomavam o espaço do terreno", de 10,6 hectares (cada hectare é o tamanho aproximado de um campo oficial de futebol), "e o tempo da gente". A criação acabou em 2010, junto com as queimadas (para abrir pastos) e o uso de agrotóxico (contra a mosca do chifre). "A gente passou a defender animais de pequeno porte e a diminuição das queimadas. E nunca acreditei que veneno fizesse bem para o meio ambiente", reverte o agricultor.

Hoje, ele mantém duas vacas e alguns pequenos animais, trabalha menos e incrementa a renda. "Já cheguei a produzir dois mil ovos num mês, de galinha caipira", diz, descobrindo ainda a criação de abelhas, "que é uma prática agroecológica, não usa agrotóxico". Assim, não precisa mais queimar a jurema; cuida, "pra ela florar pras abelhas". E anda a plantar moringa e sabiá por onde degradou.

Outra mudança veio em 2013, quando ele passou "a defender a agroecologia" na diversidade de culturas do quintal produtivo ou preenchendo o antigo pasto com uma plantação de abóbora, melão, melancia, batata, macaxeira. "Se plantar só um cultivo, vai ter dificuldade de produzir porque as pragas vão atacar com mais facilidade", ensina.

O Instituto Antônio Conselheiro (IAC), com sede em Quixeramobim (Sertão Central), clareou as ideias, apresentando-lhe a cisterna como tecnologia de armazenamento d´água. Chico do Leite fez intercâmbios nos semiáridos do Ceará, conhecendo a convivência possível: o devido respeito ao lugar. "Ninguém perde uma gota d´água", garante.

Além de guardar a água da chuva, o agricultor reutiliza as águas cinzas (de chuveiros e pias) e negras (de vasos sanitários). Chico do Leite soube da inovação pelo IAC, em 2015, "na casa do seu Aureliano, em Aroeiras, um projeto-piloto". Em 2018, pela curiosidade e interesse, ele ganhou um sistema de reuso, via política pública do Governo do Estado (Lei 16.033, de 2016). "Sem água, não tem vida. Quando chove, a gente vê a alegria de todos os animais, das abelhas, dos pássaros. Por isso, a gente reutiliza toda água", argumenta.

Na convivência com o semiárido, minhocas e bananeiras adquiriram importância para Chico do Leite. Como ele explica, são "as grandes atrizes" do sistema de reuso, filtrando as águas residuais. E rendem um extra para o agricultor: "Já apurei R$ 1.086 de húmus de minhoca (entre novembro e janeiro, enquanto a chuva não chegava)".

As águas do reuso fazem nascer o quintal que alimenta a família do agricultor. "O alimento, pode colocar até pro papa. É seguro", ele comprova. Pelo menos, 50% do que consome é colhido ao lado da casa; o excedente é vendido em feiras. "Esse quintal, não dou por dinheiro nenhum", sustenta.

Couve, cheiro-verde, batata-doce, berinjela, limão, mamão, graviola, caju são parte do inventário de Chico das Hortas - renomeiam a mulher e o sertão atual. "Semiárido é o lugar mais rico do mundo, tem muito sol, terra fértil. Hoje, a história do semiárido é outra", ele atualiza. É a história dos quintais, das permanências, dos fazedores d´água. Do sertão que se encantou.

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