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A leitura das árvores
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A leitura das árvores

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Francisco Nogueira Neto tem projeto de energia solar e reflorestamento. (Foto: Mateus Dantas / O POVO) (Foto: Mateus Dantas)
Foto: Mateus Dantas Francisco Nogueira Neto tem projeto de energia solar e reflorestamento. (Foto: Mateus Dantas / O POVO)

No Sítio Brum, localizado a partir de uma placa discreta à margem da BR-116, entre Icó e Jaguaribe (a 293,6 quilômetros de Fortaleza), todo bicho e toda planta têm importância. Pois uma cantiga de jia nomeou o lugar, em 1932, "quando foi feita a ponte no riacho. E tinha uma rã, que o canto dela é 'brum, brum, brum'", restaura o agropecuarista Francisco Nogueira Neto, 59 anos, que nasceu no Brum depois que o pai veio da serra, escapando da seca de 1958 - a pior da década de 50, com 206,87 milímetros de chuva de fevereiro a maio (em anos normais, a quadra chuvosa do Ceará fica entre 493,3 e 631,2 milímetros).

O canto incomodava, vindo da cacimba onde o povo, de jumento ou andando até dez quilômetros pela madrugada, alcançava água. O mestre de obra, para proteger a rã da morte anunciada, escondeu-a na oiticica. "Por conta, ficou a ponte do Brum, o riacho do Brum", conclui Francisco, que conviveu "toda época aqui. Minha vida foi aqui".

Viver, ainda mais no semiárido fervente, é uma tentativa atrás da outra. Pelas experimentações que fez e pretende fazer, misturando vida e sertão, Francisco-do-Sítio-Brum é conhecido da BR-116 até as bandas do Rio Grande do Sul e da Itália - de onde trouxe práticas de convivência com o clima difícil. Atentou, por exemplo, que era preciso, no inverno, se preparar para as secas: "Com a pouca chuva que tinha, eu silava e fenava... Esse ano, estou com a silagem (alimento para o rebanho dos 50 animais, grandes e pequenos) guardada para 2020, 150 toneladas".

Formado em "enxadologia", como se apresenta aos universitários nas aulas de campo ou em palestras, Francisco quis deixar o sertão, na década de 1980, depois do ataque do bicudo contra o algodão (o "ouro branco", até 1978), de uma praga no feijão de vazante e de muito agrotóxico inútil. Mas permaneceu, para cuidar do pai doente. "Então, eu disse: já que eu não vou, vou procurar um meio de sobreviver com a natureza", entrança.

Na procura, experimentou a criação de gado e a produção de queijo, ciência "que vem dos meus bisavores. Fui criado quase dentro de um tacho de leite", valoriza. De tanto ler, fez-se técnico em agropecuária, "sempre inovando um pouquinho. Quando tinha um curso, eu corria atrás". Hoje, em parceria com dois primos vizinhos e produtores de leite, a fábrica de queijo do Sítio Brum tem reconhecimento no País e produz até "leite de pedra" nas secas, brinca Francisco, garantindo a sustentabilidade da produção. São 2.400 litros de leite e 240 quilos de queijo, em 12 horas de trabalho por dia.

A última inovação, para potencializar a recente "indústria artesanal de iogurte caseiro", ele aponta, foi a instalação de oito placas solares, em novembro de 2018. É um projeto-piloto, financiado pelo Banco do Nordeste, com custo pouco maior que R$ 14 mil. "A produção se paga, é um financiamento que se paga rapidinho. E você tem uma segurança", considera Francisco, pensando além. "É uma energia limpa, é uma economia que se faz. Sol, nós vamo ter. Agora, não sei até quando vai ter água pra gerar energia, ou petróleo. Tô vendo tudo diminuindo, mas tô vendo o sol aumentando... Quando eu tiver condições de ir lá no banco, pego mais um pouquinho, vou mais pra frente".

O meio ambiente do semiárido lhe dá o norte, o de comer e o entendimento. Para Francisco, "ali tem tudo de bom: os melhores paladares, o melhor solo. Mesmo faltando água, mas, com qualquer ajudazinha, é maravilhoso, o semiárido". Ele mostra o que diz: o nada, em frente ao sítio, refloresceu. Há dez anos, o agropecuarista iniciava o reflorestamento do horizonte com plantas nativas, para remediar os danos das queimadas de décadas. São quase seis hectares já revividos e, daqui a cinco anos, ele espera ter "só de 10% a 15% de área nua".

Ipês, marmeleiros, mufumbos, caatingueiras preenchem vazios com lições de convivência. Dizem o que mata e o que cura, sabem do tempo. Francisco aprendeu a ler as árvores: se vai chover, "a caatingueira muda de terno (revestimento do caule)". Pelos encantamentos e aprendizados, ele mandou buscar os dois filhos que pelejavam a vida em Brasília. No semiárido tem mais ganho, em todos os sentidos e sentimentos. "Não saio daqui, aqui eu nasci, foi enterrado o umbigo ali. Não tem lugar melhor pra se viver depois que você aprender a conviver com ele (sertão)", embrenha-se.

E outras sabedorias

O POVO esteve no Sítio Brum há dez anos, quando o agropecuarista Francisco Neto começava o reflorestamento onde as queimadas, intensas nas décadas de 1970 e 80, arrasaram 80% da flora nativa. A prática, primitiva, retira a cobertura vegetal antes de um plantio ou para um pasto, mas agride, de morte, a natureza, comprovou Francisco.

Também o mal do agrotóxico foi um aprendizado pela perda. Em 1982, ele exemplifica, produziu 420 sacas de feijão usando três vidros de agrotóxico; em 84, na mesma área, foram 36 sacas com 38 litros de veneno. "Aí, parei. Tô morrendo e tô matando alguém. Parti para o criar", mudou.

Na cartilha do semiárido, a primeira lição é ver o que a região comporta. O solo é rico, concordam o agropecuarista e pesquisadores da China e do Japão que já visitaram o sítio. O problema não é só a escassez d´água, mas, principalmente, a falta de técnica e de consciência para conviver com o lugar. "O mau uso da terra faz com que o pão desapareça. Falta prezar a natureza, a única mãe que não perdoa. Se você agride ela, ela te dá o retorno", espelha Francisco. "É bem simples conservar a natureza: tem que aprender a trabalhar nela. Tirar dela, mas que não machuque ela", completa.

A educação pelo sertão lhe dá outro ensinamento: "Água é vida", tem que preservar. "Não sei o tamanho do açude que tem lá embaixo (subsolo), por isso, não vou gastar", é cauteloso no uso do poço profundo. "Tem o inverno pra se prevenir. E, assim, vou passando... Aqui é uma região que chove mais do que as outras. Por quê? Eu digo: a mãe natureza tá começando a me perdoar", convive, traduzindo a refloresta.

Há quem o ache "doido" e repita os erros dos antepassados, ele diz, seguindo adiante, em palestras sobre as inovações. E onde era deserto, no Sítio Brum, universidades e instituições fazem pesquisas; investigam a chuva, descobrem remédios. Esta foi a maior lição que a natureza lhe deu: "Quando comecei a zelar por ela, ela retribuiu".

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