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Terra de amores e de sonhos
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Terra de amores e de sonhos

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Celina Barros tem projeto de uso do biodigestor em Parambu. (Foto: Mateus Dantas / O POVO) (Foto: Mateus Dantas)
Foto: Mateus Dantas Celina Barros tem projeto de uso do biodigestor em Parambu. (Foto: Mateus Dantas / O POVO)

Foi o sertão que deu os amores e os sonhos para a agricultora Celina Alves da Mota Barros, 57 anos, passar esta chuva que é a vida. Celina mora, "desde menina", na localidade de Pau Preto, distrito de Miranda, zona rural de Parambu (a 415,3 quilômetros de Fortaleza), por onde se chega depois de Tauá (nos Inhamuns), da quadra esportiva e da mercearia do Geovani. Quatro famílias são a vizinhança. Tudo em volta é silêncio e memória; aqui e acolá, o canto de um galo marca as horas, um porco desperta. É um lugar onde "as galinhas ainda dormem sossegadas", valoriza Celina, feito e refeito da bondade do rio que nunca secou.

Quando aparece novidade, igual o biodigestor que a agricultora instalou no quintal de casa, a vizinhança estranha. Era um sonho antigo, alcança Celina: solteira, ouviu falar que existia um meio de cozinhar sem buscar lenha no mato e sem a preocupação de arranjar dinheiro e gás no meio da precisão.

É difícil o povo de fora entender um sonho desses, mas a agricultora, mãe de seis filhos, explica: pense no trabalho de pegar a lenha, sol a sol ou antes da chuva, fazer carvão e ariar as panelas depois do cansaço. Além disso, o preço do botijão de gás, completa Celina, nunca ajudou a desmatar menos a caatinga: "É R$ 80 um botijão, e você não tem esses R$ 80 todo mês".

Então, ela insistia em possuir um biodigestor - equipamento que, nos quintais sertanejos, reinventa o gás com a decomposição de esterco animal e não agride o meio ambiente do semiárido, já tão castigado por queimadas e desmatamentos. "Lá o rapaz do Banco do Nordeste passa pela aqui, que sempre ele dava reunião, que é o Estácio. Falei com o Estácio (sobre investir em um biodigestor)", demarca.

O sonho lhe custou a mangação dos vizinhos e a desaprovação dos filhos. Duvidavam que daria certo investir tanto dinheiro - cerca de R$ 5 mil - naquela novidade. Mas Celina calou cada opinião, "Vá mandar lá na sua casa, deixe a minha que eu cuido", juntou as economias da aposentadoria e instalou o biodigestor no quintal, em junho do ano passado. Foi ajustando e aprendendo o uso, a quantidade certa de esterco para se transformar no gás necessário e, hoje, se diz feliz da vida, com tempo e disposição para esta prosa. "Tá ali o foguim, faço meu almoço, minhas panela tudo limpinha", lucra, já pensando no próximo sonho que o sertão lhe fabrica: um trator.

Só quem convive uma vida com o semiárido sabe o valor de sonhos assim, espelha a agricultora. Celina começou criada pelos avós maternos: "E eu achava bom porque ia pra roça mais minha avó". Ela nunca perdeu esse gosto, doce e amargo ao longo dos anos. Lembra-se bem da peleja da avó, quando "plantava o arroz e ficava esperando a chuva, e o arroz atrás de morrer, e ela agoniada pra jogar água do rio pra aguar".

O rio socorreu também nos recentes anos de seca, de 2012 a 2017. "O açude secou, mas aqui, pro beiço do rio, sempre teve água", aponta Celina, que guarda ainda chuva em uma cisterna. Dessa convivência, em 2018, mesmo com o sufoco das secas encarrilhadas, ela colheu 200 sacos de milho. "Tinha vez que (a colheita) era melhor, outras vez que era pior, mas a gente nunca esmoreceu", equilibra. "Nunca a gente teve outro mei de vida, sempre foi a roça", completa-se, repassando o ensinamento da lida: "É muito sofrimento, mas, tendo coragem, a gente vive. E não se maldizer da vida".

A agricultora não pode desgostar do semiárido: o sertão também lhe deu grandes afetos. Ela se apegou às cabras, ao gado e às galinhas que cria; sente a tristeza da sede deles, nas estiagens. E é "ajeitar um bicho" ou o roçado que lhe tira "tudo de ruim da cabeça".

Há 40 anos, une, casou-se, no cartório, com o Valdir-agricultor, "sem pensar, inté hoje... Nós não tinha um copo, uma cama. Mamãe me deu dois prato, duas colher. Meu sogro me deu dois caldeirãozim". É o jeito de amar do sertão, fazendo, do pouco, o muito. Há três anos, debaixo da algaroba em frente de casa, foi o casamento religioso. E vão seguindo o roteiro, mais uma estação. "Mesmo com a seca, a gente nunca desistiu", sublinha Celina, sem vontade de outro mundo. "Como é que dá fim ao que se gosta?", refletia, enquanto uma chuva de fevereiro perfumava a prosa com cheiro de terra molhada.

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