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O bordado de cada dia
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O bordado de cada dia

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Gilberlane Oliveira tem projeto de costura e bordado em Pentecoste.  (Foto: Mateus Dantas)
Foto: Mateus Dantas Gilberlane Oliveira tem projeto de costura e bordado em Pentecoste.

Existem histórias depois do fim - da cidade, do asfalto, do preconceito, da vergonha... e essas são as maiores. São histórias surpreendentes por si. Muquém, a 32 quilômetros de Pentecoste (95,8 quilômetros de Fortaleza), é uma comunidade depois do fim. Passa Santa Luzia, Alto Branco, Capivara, Alto Vermelho, Cipó, Cacimbas, Irapuã, Jurema, Martins e Aroeiras, cada lugarejo surgindo entre vazios; e, depois, é Muquém.

Um povoado de "quatro, cinco casas perto, tudo família (tio, avô, pais); outras casas, já fica mais distante", sem hospital, ou médico no posto de saúde, ou centro de compras, onde "só encontrava com crianças de outra família no colégio", descreve o costureiro Gilberlane Oliveira Arruda, 24 anos, o Gil, para quem "até agora, a vida toda" foi ali, "sempre estrada de barro", sem poder adoecer, convivendo com a falta. "De um tempo pra cá é que começou a melhorar: chegou o abastecimento de água e de energia".

Na infância de Gil, a seca foi companhia que lhe tirou o gosto pelo ofício do pai, um agricultor de milho e feijão, que trabalhava muito e lucrava pouco. "Tinha vontade de permanecer na comunidade, mas eu não queria ir para o lado da agricultura", ele opõe. Depois do Ensino Médio, a mãe, bordadeira igual à avó, deu-lhe inspiração e linha para a convivência com o semiárido. Ele aprendeu a bordar como meio de sustento em Muquém, lugar que acha mais bonito do que o Rio de Janeiro "por causa da natureza".

A herança da mãe, o costureiro investiu no Programa Jovem Empreendedor Rural, formação promovida pela Agência de Desenvolvimento Econômico Local (atuante em 29 municípios do semiárido e com sede em Pentecoste). A prática de bordar para fora se aperfeiçoou "com uma visão de empreendedorismo", ele tece.

Aos 19 anos, recém-casado e ainda morando com os pais, Gil iniciava a fabricação comercial de jalecos. Havia uma máquina e a ajuda da mulher, Juliana de Oliveira Rocha, 21 anos, que decidia um rumo da vida aos 16 anos. "Não concluí o Ensino Médio, pensando em ficar com ele... Bem dizer, fomo criado junto", segue, entre o casamento e o expediente de manhãzinha ao entardecer.

As peças sempre foram vendidas no Mercado Central, em Fortaleza, por conhecidos. O lucro, Gil aplicava na produção: "Comprei mais duas máquinas, fez três". De máquina em máquina, já são 13 mais o plano de aumentar, em breve, o galpão. Ele emprega 12 costureiras e bordadeiras das comunidades vizinhas.

Hoje, a produção varia de 300 a 800 jalecos/mês - as melhores épocas são de abril a agosto e de novembro a fevereiro. Independente de chuva, Gil afirma bordar cada dia no semiárido. Aprendeu também corte e costura e elabora a marca Alumiar Ateliê, diversificando a oferta. O tempo que ele tem de empreendedorismo quase coincide com o período da derradeira seca (2012-2017). Nos últimos cinco anos, o costureiro colheu o que plantou: uma moto, um carro e uma casa própria. "Tudo saiu desse trabalho", garimpa o possível sertão.

A internet, instalada há pouco mais de dois meses, facilita o comércio via WhatsApp (85 9.9207.0529). A maior parte das vendas ainda é para o atravessador, a preços que vão de R$ 25 a R$ 35 por jaleco. Mesmo com os valores subestimados, já que o atravessador impacta no lucro próprio, Gil alumia: "Meu foco é permanecer aqui e aumentar a produção, para conseguir gerar uma renda para outras pessoas da comunidade".

O êxodo das novas gerações de Muquém, "tudo à procura de um trabalho", cruza a história do costureiro. Lidar com o semiárido lhe exigiu persistência e enfrentar outra natureza - a das gentes: o preconceito e a vergonha. Se chegava visita, ele "corria da máquina" ou procurava "um canto bem reservado" para bordar e costurar. Ao lado da mãe e da mulher, buscou a coragem por dentro, no canto que guarda o "amor pelo lugar, não precisa nem explicar".

E foi ensinando outros homens a ter o sertão nas mãos. Muitos já se chegaram, perguntando como é que ele faz. Certa vez, Gil apareceu em um programa de televisão, no Rio de Janeiro, contando por que a história dele, nascida em Muquém, é grande. "Eu acho que é a vontade de permanecer aqui. E a gente ajuda muitas pessoas", costura.

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