"Coração meu, convém descansar", cantou João Gilberto nos idos de 1981. E descansou. O cantor, violonista e compositor morreu ontem no Rio de Janeiro. Aos 88 anos, o pai mais perfeccionista que a Bossa Nova poderia ter calou-se para o mundo — mas a sua voz ecoa, múltipla, nos cantos de tantos aprendizes do menino de Juazeiro da Bahia. "João Gilberto foi um divisor de águas na música brasileira. Ele mudou o estilo da música e levou isso para o mundo. A nossa música sempre foi muito popular, muito para fora: o João Gilberto deu uma interiorização que possibilitou o desenvolvimento dos instrumentos e a música, em si, abriu mais espaço", compartilha Raimundo Fagner.
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Em 1983, o cearense tornou-se amigo do recluso João Gilberto após ele assistir à apresentação de Fagner debaixo de chuva em um festival no interior paulista. "Nos ligávamos todos os dias", garante Fagner em entrevista ontem ao O POVO. Em uma dessas conversas, passou o telefone ao Fausto Nilo. "Disse: 'Ô, João, fala aqui com meu parceiro Fausto Nilo' e me deu o telefone. Eu fiquei mudo, não sabia o que dizer", relembra Fausto. "Eu sou fã, fã, fã do João. Ele veio a Fortaleza quando eu tinha 15 anos e eu estava lá, sentado na segunda fila do Cine Samburá, com o disco na mão pra ver o show dele. Esse jeito não apressado, as sutilezas, todas essas mudanças de João Gilberto são permanentes no mundo", emociona-se.
Filho do comerciante Juveniano Domingos de Oliveira e da católica Martinha do Prado Pereira de Oliveira, João viveu em monastério seus últimos anos de vida. Invisível para o grande público, abria a porta do apartamento para poucos, como a filha Bebel Gilberto, a ex-namorada Claudia Faissol e sua filha com ela, Lulu. O gênio da música brasileira lançou, nos 50 anos dedicados à arte, 11 discos de estúdio e nove ao vivo. O antológico Chega de saudade, de 1959, marcou o começo de uma história de primorosa técnica musical. "Tinha uma coisa que era impressionante: ele ia tocando a harmonia no tempo e deslocando o tempo da voz, mas isso não brigava com a harmonia. Ele deslocava, atrasava o tempo da melodia, e ela continuava andando no tempo, mas dentro ainda da lógica harmônica. Era uma coisa que era a cara dele e ele fazia com maestria", destaca o músico cearense Pantico Rocha.
"O jazz mundial deve muito a João Gilberto. Não é só um cuidado com cada nota, a afinação, a perfeição do fraseado: é a liberdade o que mais impressiona. Uma liberdade rítmica, uma flexibilidade", defende o professor e instrumentista Heriberto Porto.
Os últimos anos do intérprete de Desafinado, Garota de Ipanema e Chega de Saudade foram conturbados. No fim de 2017, Bebel Gilberto obteve sua tutela, quando o músico já não conseguia mais cuidar da saúde e das finanças. Até o fechamento desta edição, a causa da morte não havia sido divulgada pela família.
Estudioso da obra do baiano, o cantor paulista João Leão o considera um estado de presença total. "No panteão dos deuses da música brasileira João Gilberto é Cronos, Oxalá, Brahma, Buddha. As marchinhas do começo do século, os primórdios do samba, a Bahia que é o coração negro do Brasil, a obra de Tom Jobim. Quantas gerações ainda aprenderão com esse verdadeiro gênio?" (colaborou Teresa Monteiro)
Dicas
O livro João Gilberto (Cosac Naif) reúne dezenas de textos sobre o homem e sua obra. Já o filme Onde está você João Gilberto (Georges Gachot) é uma viagem pelo mundo particular do músico. E o disco Amoroso tem a mais bela versão de Besame Mucho.