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Tecer ficção, contar histórias
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Tecer ficção, contar histórias

|Literatura| Boca do Inferno, romance histórico de estreia da cearense Ana Miranda, reescreve, com traços de ficção, a figura do poeta Gregório de Matos. O livro completa três décadas desde seu lançamento
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Ana Miranda (Foto: Sara Maia, em  02/03/2012)
Foto: Sara Maia, em 02/03/2012 Ana Miranda

Ana Miranda sonhou que subia a escada de uma torre e no alto encontrava uma mulher cega, de muita idade, as tranças brancas, amante do poeta Gregório de Matos. Depois do sonho, tão nítido quanto estranho, a escritora saiu em busca dos poemas do escritor. "Eu já havia lido seus poemas sacros e líricos, na escola, e sabia da existência das sátiras e dos poemas obscenos. Sentia imensa curiosidade em lê-los, mas havia apenas pequenas edições expurgadas", lembra.

A escritora, que à época ensaiava os primeiros passos da hoje reconhecida carreira literária, não descansou enquanto não recolheu todos os sete volumes da obra completa do escritor, "indo de sebo em sebo, de amigo em amigo", porque já estava escrevendo a história do sonho, que se transformou na história do crime que dá tom à narrativa de Boca do Inferno. Em agosto de 1989 chegava, pela Companhia das Letras, a primeira edição do livro: romance de ação, imaginação e sobretudo de linguagem.

"Em cada porta um bem frequente olheiro, a cada canto um grande conselheiro, [...] muitos mulatos desavergonhados" - assim era, para o poeta baiano Gregório de Matos, a Bahia no século XVII. Nesta cidade de muita devassidão e desmandos se desenrola a trama, que coloca a luta pelo poder em Salvador, a primeira capital do Brasil. No contexto recriado por Ana, protagonizam Padre Antônio Vieira e o próprio Gregório de Matos, este último, amplamente conhecido pela expressão que dá título ao livro.

A vida de Gregório, inclusive, hoje nos chega por meio de discursos cheio de lacunas. Se, por um lado, os traços de sua biografia são um tanto quanto precários nos livros de história, na ficção de Ana Miranda, eles aparecem na forma de um personagem convincente, ainda que cercado de muitas hesitações e incertezas. Para Cid Bylaardt, professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Ceará (UFC), as brechas históricas são o material precioso de que dispõe o romancista. "A memória se constrói no esquecimento, e, no caso do discurso artístico, eles favorecem a expressão dos grandes escritores, que é o caso de Ana Miranda", pontua.

Sucesso editorial, o romance vendeu mais de 50 mil exemplares e fez a autora despontar na cena literária brasileira, nos anos 1990. "A pesquisa era muito mais difícil na época, e, nos anos 1980, não havia quase nada publicado. As bibliotecas não facilitavam, eu tinha de viver pelos sebos procurando raridades (que não fossem muito caras). A minha melhor fonte foi o Real Gabinete Português de Leitura", lembra Ana. Desde sua publicação, Boca do Inferno ainda é, para muitas gerações de leitores, o primeiro contato com a produção literária da autora cearense, natural de Fortaleza.

"Não sei exatamente quando foi a primeira leitura, mas lembro perfeitamente a sensação: era a de ser transportada para um momento, uma paisagem, um diferente sentimento de Brasil", lembra a escritora Tércia Montenegro, também cearense. Para ela, a reconstituição de momentos e cenários da narrativa foi como uma "viagem no tempo": "era como se, finalmente, eu encontrasse um rosto para aquela voz poética do Gregório de Matos, do Pe. Antônio Vieira, que eu imaginava nos livros. Ana proporciona aos leitores essa mágica", emenda.

"Fiz tudo com paixão, com exultação, ardor, arrebatamento, e acho que esse sentimento contagia os leitores", descreve a autora. "Fui realmente muito livre nesse trabalho, achava que nunca ninguém iria ler. Mas é o meu livro mais lido e vendido", continua. Até a publicação da obra, ela lembra que o processo de escrita de seu romance foi custoso. "Trabalhei por cerca de dez anos nos originais, foi o meu aprendizado de construção de um romance clássico. Por sorte, tive, nessa época, uma convivência com o escritor Rubem Fonseca, que me dava estímulo, inspiração para prosseguir".

Boca do Inferno foi incluído na lista dos cem maiores romances em língua portuguesa do século XX, publicada pelo jornal O Globo em 1998, além de ter levado o prêmio Jabuti de revelação em 1990. "Preciso ter muita gratidão por tudo o que o livro me deu - um lugar como romancista, um lugar dentro de mim mesma - e sempre agradecer de alguma forma".

A Última Quimera
A Última Quimera

A Última Quimera (1995)

Ana Miranda se debruça, neste livro, sobre a vida e a obra de Augusto dos Anjos (1884-1914), poeta brasileiro que uniu a objetividade do cientificismo com os mais profundos e incompreensíveis sentimentos do ser humano. A partir de ampla pesquisa histórica, a autora descreve as inquietações metafísicas que consumiram a vida do jovem poeta, enquanto traça um quadro dos costumes e acontecimentos da época.

Dias & Dias
Dias & Dias

Dias & Dias (2002)

O romance Dias e Dias, publicado em 2002, reconstrói a vida do poeta romântico Gonçalves Dias, revelando detalhes pessoais em meio a nuances de ficção. A obra é inspirada na poesia Dias após Dias, de Rubem Fonseca. A narrativa apresenta a voz da narradora Feliciana, uma mulher que, desde menina, fora apaixonada por Gonçalves Dias.

Xica da Silva
Xica da Silva

Xica da Silva: A Cinderela Negra (2016)

A obra nos transporta para o Brasil do século 18: entre muitos fidalgos, cantos africanos e rezas católicas, um quadro cheio de detalhes do violento ciclo do diamante. Com narrativa vibrante, Xica da Silva aparece sedutora, fiel ao marido e dedicada aos filhos, mas também dona de escravos e administradora da maior riqueza de seu tempo.

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