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"O Brasil se olha nos desfiles do sambódromo"
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"O Brasil se olha nos desfiles do sambódromo"

A Paraíso do Tuiuti trará o Bode Ioiô como tema de seu samba-enredo em 2019. Jack Vasconcelos diz que a ideia é chamar atenção para polarizações sociais
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O teor crítico sairá, mais uma vez, pelas portas da Paraíso do Tuiuti.

A escola carioca, que conquistou o posto de vice-campeã do Carnaval 2018 do Rio de Janeiro e foi aclamada nas redes sociais como campeã do povo, anunciou, este mês, que em 2019 trará enredo sobre o cenário sociopolítico brasileiro. Para “costurar o grito” que deve alcançar a reflexão cidadã por meio da simbologia carnavalesca e dos holofotes desse período, a agremiação do Morro do Tuiuti escolheu um personagem do imaginário popular cearense: o Bode Ioiô. Destaque no Museu do Ceará, onde está embalsamado, o animal chegou a Fortaleza em 1915 junto a uma família de retirantes e até o ano de sua morte, 1931, fez muita história na Capital, sobretudo em suas andanças pelo centro da Cidade. Reza a lenda que ele foi candidato a vereador em 1922 e venceu como o mais votado.


“O Bode virou símbolo da cultura local. A Belle Époque, acompanhada pela higienização social, queria apagá-lo, jogá-lo pra escanteio. Para a civilização da época, o bode era feio e retrógrado. A elite não sabia o que fazer com ele”, defendeu o carnavalesco da Paraíso do Tuiuti, Jack Vasconcelos, em entrevista ao O POVO na última semana. “O Bode Ioiô tem uma relação com o que a gente passa até hoje.

Infelizmente, a ideia que se tem de menosprezar o que é nosso e da população mais carente é muito presente. O pobre é usado como bode expiatório para muitas coisas”, justifica o sambista de 44 anos que, desde 2004, já representou diversas escolas na Marquês de Sapucaí e é graduado em Belas Artes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


O POVO - Em 2019, o desfile da Paraíso do Tuiuti seguirá um viés sociopolítico. Por quê?


Jack Vasconcelos - Foi um retorno que a gente teve do Carnaval que passou. Na verdade, quando a gente o lançou o samba-enredo em 2017 não havia intenção direta de fazer um enredo político, que foi caracterizado assim pelas pessoas. Era uma reflexão sobre a abolição, ele não foi pensado de maneira intencional. Foi acontecendo naturalmente, formando-se pelo resultado da minha pesquisa com professores e historiadores e ficou daquela forma.

Tivemos uma resposta que eu não contava. A Tuiuti chamou atenção de novo pelo que ela estava fazendo e foi comentada dentro e fora do Brasil.


OP - Como a escola chegou ao Bode Ioiô e por que escolhê-lo? Qual a conexão entre a sua simbologia e o atual momento brasileiro?


Jack - A Tuiuti já está nessa batida mais crítica já tem um tempo. O Bode veio até mim pelo João Gustavo Melo, que já foi do Departamento Cultural do Salgueiro. Ele me trouxe o Bode há uns três, quatro anos. Estava engavetado. Depois que passou o momento da construção do enredo sobre a escravidão, foi a hora de trazer o Bode Ioiô. Fui para Fortaleza e passei três dias. O João Gustavo e o Rui Simões Filho fizeram comigo os caminhos que o Bode fez. O memorialista Nirez estava me acompanhando e foi sensacional. Fui também ao Museu do Ceará e conversei com a Carla Vieira, a quem agradeço por ter sido muito solícita comigo. Eu já tinha lido algumas coisas e ela me contou a história. Daí, entendi a importância. O Bode virou símbolo da cultura local. A Belle Époque, acompanhada pela higienização social, queria apagá-lo, jogá-lo pra escanteio. Para a civilização da época, o bode era feio e retrógrado.

A elite não sabia o que fazer com ele: todo mundo chique e o bode passando. O fato de ele ser retirante, traz um ícone do sertanejo na cara da elite. Esse confronto de extremos, de um lado a sociedade querendo ser rica e estrangeira e do outro , a raiz cultural, é sensacional. O Bode Ioiô tem uma relação com que a gente passa até hoje. Infelizmente, a ideia que se tem de menosprezar o que é nosso e da população mais carente é muito presente. O pobre é usado como bode expiatório para muitas coisas. Existe uma analogia muito clara pelo fato de, à época, o Bode estar incomodando a elite e o que o pobre significa hoje.


OP - Mesmo existindo o Macaco Tião, carioca, sua inspiração veio parar no Ceará...


Jack - Eu acredito que o Macaco Tião ficou muito datado. Não temos no Rio de Janeiro a cultura de falar muito dele. O Bode é falado até hoje. Está empalhado no Museu do Ceará e é o ícone mais visitado do local até hoje. Sei até que o Carnaval de rua daí faz referências ao Bode. Então, ele não ficou datado. O Macaco Tião aqui e o Cacareco (rinoceronte) em São Paulo, sim.


OP - Esse viés crítico é maioria na cúpula da Paraíso do Tuiuti?


Jack - O enredo é definido junto ao presidente. Ele fala o que ele espera para aquele ano da escola. Este ano, ele me disse que tinha sonhado com o Nordeste e eu já tinha a ideia do Ioiô. Então casou. A escola gosta de abordagens históricas, do Carnaval cultural. E aí o enredo da Tuiuti continua o caminho que a escola está trilhando desde que entrou na série A.


OP - Com a repercussão do desfile da Tuiuti deste ano, você precisou afastar-se das redes sociais. As repercussões, positiva e negativa, surpreenderam você?


Jack - Eu tive que tornar privadas as minhas contas por motivos óbvios. Tive que tomar providências em relação à minha segurança.

Recebi muitas mensagens que não foram bacanas. Ameaçadoras. Vi como algumas fotos estavam sendo usadas por pessoas que não têm relação com a escola de samba e até mesmo contra a agremiação. Uma coisa é saber que isso acontece, mas é diferente quando acontece com você. Por outro lado, houve a crítica positiva e, com isso, percebi como as negativas foram centralizadas de um grupo de pessoas. A parte que falava bem apoiava, dava força, foi bem mais amplo e bacana e veio muito de camadas da sociedade que não acompanhavam bem, ou há muito tempo, o Carnaval. Foi bom receber a manifestação positiva.


OP - A apoteose é lugar de chamar a sociedade à reflexão?


Jack - Tenho um amigo que diz que o sambódromo é o grande divã do Brasil. Não sei se ele inventou, mas ele está certo. O Brasil, até de forma inconsciente, se olha nos desfiles do sambódromo. Sempre há um gancho, uma metáfora, e tem essa coisa de pegar as pessoas desprevenidas pela beleza. Nessa hora, elas estão de coração aberto.


OP - Você acha que há relação entre o desfile da Tuiuti e a intervenção federal no Rio de Janeiro, uma vez que ela teve início logo após o Carnaval?


Jack - Eu lembro que, na época, ouvi essa história. Acho que provocar não, talvez apressar. Mas a gente nunca vai saber, ter essa resposta. A Beija-Flor fez críticas muito contundentes e a Mangueira fez crítica ao poder público. Penso que foi o combo, o conjunto de escolas botando a boca no trombone. Talvez a resposta seja por aí.


OP - Como crítico e observador, avalia que o País tomará que rumo eleitoral este ano? As pautas conservadoras vão ser mais efusivas?


Jack - É muito difícil ter uma análise mais precisa. O que percebo é que veículos mais poderosos passam um tipo de mensagem e que os menores uma contrária. Não há consenso, harmonia. Eu acredito que, com o aumento da violência urbana e a luz em cima de alguns casos de corrupção, a maioria das pessoas tende a ir para um lado mais duro. Porém, vejo um lado mais duro e outro de uma direita conservadora ganhando força, por falta de informação da população.

Tenho esperança de estar errado.


OP - Voltando à Tuiuti: acha que um trabalho que tende à reflexão cidadã pode levar vocês a posições de destaque no Carnaval?


Jack - Quando penso nos enredos, não penso nesse retorno. Não penso em fazer para causar, lacrar. Faço porque acredito que é algo importante a história ser contada naquele ano, naquela escola. Vai ser natural. A escola até espera que as pessoas procurem-na. É um momento positivo saber que estamos contribuindo para a discussão.

Podem não concordar, sem problema, mas é importante fazer esse embate de ideias, que está cada vez mais escasso. O que mais me chamou atenção na história do Bode foi a molecagem, que é muito do brasileiro. Isto nos dá a leveza suficiente e calma para olhar os problemas.


OP - Onde está a faixa do fictício presidente Michel Temer criada para o desfile deste ano?


Jack - O nosso presidente, o do desfile, já tinha uma viagem marcada para logo depois do desfile. Ele foi para a Itália e acredito que tenha ido com a faixa (risos). Essa história rendeu muito e ninguém sabe o que de fato aconteceu. Uns dizem que foi mandado tirar, outros que rasgou. Sinceramente, eu esqueço da faixa. O que a Tuiuti conseguiu fazer foi muito para eu me apegar a pequenos detalhes.

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