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#nudez. Vibração da carne
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#nudez. Vibração da carne

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O corpo começou a ser problema quando Adão e Eva abriram os olhos e perceberam que estavam nus. “Quem te fez saber que estavas nu? Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses?”, perguntou um Deus amofinado ao primeiro homem. A mordida desinteressada culminou na perda da inocência. Caíram por terra as vestes do pudor. Adão, misógino primeiro, apontou seu dedo: “A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi.”
 [SAIBAMAIS]

Deglutido o fruto do conhecimento, depravada a inocência, passado o bate-boca com o pai, apareceu o tesão. Com um paraíso inteiro pela frente e uma imortalidade revertida - agora o relógio do tempo começava a preocupar - veio a vontade de trepar. O prazer da carne. O pecado. Povoaram o mundo enquanto satisfaziam seus desejos, cientes do delito que os consumia.
 

Foi em nome desse mesmo Deus, agora travestido de “moral e bons costumes”, que os filhos de Adão e Eva boicotaram exposições e perseguiram artistas em 2017. Maior das ofensas, o corpo desnudo, imperfeito, profano, esteve no centro de uma guerra que se espalhou pelo País, recrutando conservadores e despidos para o campo de uma batalha furtivamente incorporada ao debate político partidário.
 

A arte, deus dos desnudos, cobrou seu lugar. Em Brasília, colocou um homem nu dentro de uma bolha de plástico transparente; outro homem nu, manipulável, tátil, apareceu em São Paulo; em Porto Alegre, reuniu Adriana Varejão, Lygia Clark, Leonilson, Portinari e crianças viadas no mesmo espaço; em Jundiaí, transformou uma transexual em Jesus Cristo; e em Fortaleza, rabiscou os traços da mulher real, peluda e sangrenta.
 

O País, que sofria o empalidecer de suas políticas culturais desde o fechamento precipitado do Ministério da Cultura, em 2016, encontrou na nudez o bode expiatório de suas culpas. Corpo, sexo, prazer e pecado, reunidos em uma mesma linha risível de argumentação, como elementos indissociáveis de uma heresia nacional, assanharam os humores mais pudicos e instigaram a declaração de guerra. O Brasil estava determinado a matar seu próprio sexo.
 

Para deter o “ato obsceno”, policiais militares rasgaram a bolha de plástico  que envolvia a nudez do artista no Distrito Federal. O homem manipulável de São Paulo virou o pedófilo das redes sociais. O Queermuseu foi encerrado pela instituição que o recebeu. A atriz transexual viu seu espetáculo cancelado por um juiz que falava de “mau gosto”. Por aqui, a artista dos cadernos rabiscados teve, sem aviso prévio, sua obra alterada por uma universidade particular.
 

A vertigem coletiva dos conservadores atingiu seu ápice em novembro, quando a filósofa estadunidense Judith Butler foi vítima de reiterados ataques durante sua rápida passagem pelo Brasil. A bruxa do pós-estruturalismo e da teoria queer foi queimada enquanto uma horda de personagens distópicos bradavam contra a “ideologia de gênero” e a favor do “meus filhos, minhas regras”.
 

No fim de 2017, a cantora Anitta, talvez o nome brasileiro com maior projeção internacional na última década, desarmou a tradição e aturdiu a própria militância com o clipe de Vai malandra. Perdidos entre as curvas perfeitas e a bunda mole, entre a mulher objetificada e a preta favelada, entre a qualidade e o topo das paradas, os argumentos se esvaziaram. De repente, foram anuladas as certezas absolutas. O corpo venceu. 

 

dicionário
nu·dez
substantivo feminino
1.
Estado de nu.
2.
Falta de vestuário.
3.
Ausência de folhas, de vegetação.
4.
Ausência de ornatos
5.
Carência, penúria.
Na imagem, O Nascimento de Vênus, pintura de Sandro Botticelli
 

Jáder Santana
Editor-assistente do Vida & Arte
jader.santana@opovo.com.br

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